A mitificação de um criminoso
Luciano Rezende *Na longínqua Ushuaia, a cidade mais austral do mundo, há um museu onde funcionava o antigo presídio destinado aos criminosos de alta periculosidade. Nos corredores e celas da antiga prisão se pode ter uma idéia da vida levada por aqueles detentos que foram enviados, literalmente, para o “fim do mundo”.
Entre as centenas de presos que passaram por Ushuaia, um em especial ganhou notoriedade pelos seus crimes marcados por requintes de crueldade. Trata-se de Cayetano Santos Godino, o famoso Petiso Orejudo. Com apenas 16 anos de idade esse assassino em série argentino já havia cometido uma longa lista de crimes na cidade de Buenos Aires.
Certamente a elite argentina da época gostaria de ver esse assassino morto, cumprindo uma sentença de morte bem longe de seus círculos sociais. Ontem e hoje, tanto na Argentina como no Brasil, a pena de morte é sempre reivindicada pela classe dominante como primeiro recurso no combate à violência. É a velha máxima da direita: “bandido bom é bandido morto”. Ou, no dizer de Brecht, melhor acusar o rio que tudo arrasta que as margens que o comprime.
Todavia, passado mais de meio século da morte de Petiso Orejudo e de seus colegas (o presídio foi fechado em 1947), é comum vermos turistas de todas as partes do mundo, a maioria muito abonada, manifestar uma estranha compaixão por esses criminosos. Justamente aqueles que defendem a pena de morte aos presos de hoje, são contagiados por um sentimento coletivo de indulgência ampla, geral e irrestrita aos bandidos do passado. Um clima de nostalgia toma conta e aqueles que outrora eram vistos como párias são transformados como mártires que pagaram todos os seus pecados naquela insalubre penitenciária. Em outras palavras, Petiso Orejudo e seus comparsas viraram mitos.
Jair Bolsonaro, um criminoso de nossa época, também é tratado como mito por muitos de seus seguidores. Nas redes sociais é comum ser chamado de “BolsoMito”. Mas diferentemente de Petiso Orejudo, ainda não foi preso e goza de grande reputação nas hostes reacionárias. Pior, usa de suas prerrogativas e imunidade de parlamentar para difundir o ódio, o machismo, a ditadura, a homofobia e até a prática do estupro.
Na verdade, um mito, de maneira geral, é uma narrativa utilizada pelos povos ancestrais para explicar fatos da realidade e fenômenos da natureza que não eram compreendidos por eles. Bolsonaro é um fenômeno muito bem entendido pela sociedade contemporânea, alimentado por uma minoria fiel a bizarrices que necessita de um personagem, quase que sobrenatural, capaz de defender em público suas psicoses e seus preconceitos mais indefensáveis.
Depois de seis décadas de sua morte há quem compre souvenires de Petiso Orejudo. Jair Bolsonaro, entretanto, desperta mórbida admiração de outros criminosos que querem mais que uma suástica como objeto de adorno. Querem alimentar um psicopata disposto a vomitar todo o ódio contra a convivência democrática entre os povos e a civilidade.
A defesa do estupro feita pelo Deputado Federal Jair Bolsonaro não encontra precedentes nem no fim do mundo, onde jazem outros mitos e lendas de mesma ou menor periculosidade.
Luciano Rezende Moreira
Professor do IFF Bom Jesus
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