sábado, 27 de junho de 2020

PRIMEIRA EPÍSTOLA

Jayro Xavier



Os deuses pereceram, 

aqueles deuses, Fábio, 

de Ovídio, oh aqueles 

de sonho e carne deuses

 vingadores, de Jove 

apenas temerosos. 

É morto o próprio Zeus, 

ou come o pão do exílio 

numa ilha sem nome, 

erma, erma de vida, 

onde a pobreza chora 

de Nume, entre salgueiros. 

Agora somos nós 

que alçamos vôo em vão. 

Agora somos nós

 e naves, nós e nada. 

Nós, morituri, os próprios 

homens, para imitar 

o mito. Nós, ó Fábio, 

aves de bico adunco 

no vácuo imponderável. 

Mais feros do que Júpiter 

em toda a sua cólera, 

menos votados à 

Justiça. Nós, que o Orbe 

semeamos de ogivas 

e agora abrimos túneis 

na terra, temerosos 

de nossa aérea flora. 

Os deuses, suas armas 

trovões e raios eram, 

fúrias do mar, e fogo. 

Nenhum de sua Ordem 

a energia acordou, 

que dorme no silencioso

dínamo das coisas. 

Mais simples eram, 

e humanos, mais radiosos. 

Mortos os deuses, morto

Júpiter, outro ciclo

se abriu, sem brilho, aos homens 

confiado; outra Idade, 

desvendado o secreto 

segredo da matéria. 

Primavera e verão

se perderam, e a dos frutos 

doce estação, e aquela 

de duração mais longa 

e mais gelado clima, 

a todas sucedendo 

uma estação sem nome, 

não-estação, Idade 

Urânia, assi chamada. 

Pudesse lhe dizer 

dos campos áureos: altas 

alvas nuvens por sobre 

as árvores e os rios; 

ou dos aêneos campos 

ainda surcados pelo 

arado! Mas nem Ceres, 

nem os caprinos seres 

subsistem, que as florestas 

habitavam. Nem Tebas. 

Nem, em Quios, aquele 

adolescente, aquele 

donoso deus de alegre 

rosto, seus rastos sobre 

a areia. Uma Cidade 

construída no tempo 

nos invade. Não somos,

não podemos. Dos deuses 

aprendemos apenas, 

coa vingança, essas asas, 

esse fluir no espaço, 

aéreos e terrenos. 

Pois em verdade, Fábio, 

há entre ter e ser 

todo um caminho a per 

correr, aprendizagem 

do homem na direção 

do Homem, ser divino, 

feito de água e 

ar e fogo e terra e tempo.


(Eis a 1a EPÍSTOLA de IDADE DO URÂNIO: cinco epístolas em tom de elegia. Ed. Cátedra, 1974)

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