domingo, 4 de agosto de 2024

MEMÓRIAS DA VIVÊNCIA NA USINA SANTA MARIA

                                            João Batista da Cruz 

Foto 1


Como é natural, não me recordo da chegada à terra que me recebeu, às 1:30h de 23 de junho de 1949. A informação posterior que tive dos que estavam me esperando, é a de que ficaram alegres e felizes em ter nas mãos um menininho de cabelos escuros e cacheados, apesar do meu choro no mergulho direto nas terras da Usina Santa Maria (USM). Fui registrado sob o nome de João Batista, por ter nascido na véspera da data de celebração de São João Batista, como filho da Dona Eva e do Sr. Enéas Cruz. À medida que cresci, fui percebendo o ambiente de uma casa com amplo quintal onde brincava alegre, circundado por um rico pomar, em que, aos poucos, me acostumei a deleitar as frutas saborosas colhidas ao pé das diversas árvores frutíferas, plantadas e cuidadas pelo meu avô, que habitava o nosso lar com meu pai, minha mãe, bem como a madrinha da minha mãe e minha irmã. Eu compartilhava o meu cômodo de dormir com meu avô, que me enriquecia com suas memórias de aventuras, músicas (tinha sido violeiro), e histórias sobre Saci Pererê, mula sem cabeça, lobisomens, e contos fantásticos sobre a natureza e de pessoas. E cresci, convivendo com as diversas crianças do nosso tempo alegre e despreocupados, brincando, frequentando a escola e convivendo com nossos pais e mães dedicados ao trabalho e demais atividades da vida, em uma convivência sadia. Esse foi um bom começo de vida.

Mas o interesse objetivo desse texto, é recordar as memórias com o ambiente e as pessoas com as quais convivíamos durante a permanência efetiva na USM, até completar 15 anos de idade, quando me transferi para Campos dos Goitacazes, cidade onde prossegui nos estudos, primeiramente no Colégio Batista de Campos, e depois no Liceu de Humanidades de Campos, onde completei a fase colegial, antes de ingressar na Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade Federal Fluminense, em Niterói. Nesse último período, ainda visitava regularmente a USM para rever a família e os conterrâneos, e atuar como pistonista de grupo musical em muitos bailes e shows na região, no “Conjunto Danúbio”, formado por músicos da USM e outros de Campos dos Goitacazes.

A USM era uma sociedade bem organizada e estruturada para uma convivência salutar que envolvia as crianças na frequência ao Grupo Escolar, os jovens estudantes no Ginásio Nossa Senhora Aparecida, em Santo Eduardo, distrito de Campos dos Goitacazes, enquanto os seus pais trabalhavam na produção da usina (Foto 1: Grupo de trabalhadores, anos 1950) e nos serviços de comércio bem organizado com um armarinho (loja de artigos diversos), armazém, bar, barbearia, açougue e padaria para suprir as necessidades de todos, e no transporte da produção, como pelas máquinas locomotivas, ícone dos nossos tempos (Foto 2:: Locomotiva da USM). A participação maternal era cuidadosa, com as mães se dedicando aos seus lares, na supervisão e educação dos filhos, e na atuação social e religiosa. Elas nos educaram nos princípios morais do bem e do respeito ao próximo e aos nossos compromissos escolares, para garantir nossa boa formação.

Na USM, além da produção de açúcar e álcool, as atividades profissionais como a de torneiros-mecânicos, de eletricistas, marceneiros, ferreiros, pedreiros, almoxarifado etc., promoviam o suporte aos demais trabalhos necessários à estruturação socioeconômica, como também formavam profissionais qualificados ao trabalho para outras regiões. A USM dispunha de numerosas residências construídas por sua administração, dispostas em ruas estabelecidas (Foto 3: Rua típica para residência de trabalhadores) em diferentes locais ao redor da área industrial, para habitação dos trabalhadores, e de prédios e complexos para o lazer, esportes e atividades socioculturais, além do amplo complexo de prédios para a produção, controle de qualidade e armazenamento do açúcar e do álcool.

O convívio social atraía grande participação dos “santa-marienses”, que acorriam ao clube social, ao campo de futebol e áreas destinadas ao volleyball e ao cinema, para viver momentos prazerosos de lazer, principalmente nos fins de semana. Eram instantes de convivência fraterna e interação interpessoal pacífica, beneficiando todo ambiente social. O clube realizava “domingueiras dançantes”, bailes em datas de celebrações, de carnavais para adultos e crianças, jogos de tênis de mesa e de totó, e incentivava a formação de times de vôlei para trabalhadores e jovens interessados. Era de relevância a atuação do time do Santa Maria Futebol Clube (SMFC), em um campo bem cuidado, reunindo ótimos jogadores que atuavam no torneio regional, com grandes desempenhos atraindo toda a sociedade, marcando nossos tempos de jovens amantes do futebol, muitos dos quais de grande habilidade técnica. A atividade do SMFC é ainda mantida por dedicados conterrâneos, como Sr. Joenis Francisco, que mantém o campo e participa dos campeonatos da região com muito sucesso, conquistando muitas vitórias. Muitos de nós, ainda na transição da infância para a adolescência, jogávamos futebol na área de várzea, posteriormente transformada no lago que embelezava a entrada da Usina, onde muitas vezes remávamos em barquinhos, aproveitando momentos de puro lazer.  

Dentre as atividades culturais, é relevante recordar da organização de concursos de cantores, preparação e apresentação de peças teatrais, da tradicional folia de reis, além do escotismo, que sempre nos atraía como crianças e jovens, constituindo ótimo recurso de instrução e estruturação moral aos que participavam como escoteiros e lobinhos. Uma atividade de grande expressão para os “santa-marienses” era a Banda Musical da USM, com aulas semanais de música para jovens e adultos, estudando solfejos e treinos em instrumentos musicais. Os estudos e os desfiles tinham a direção do Maestro José Primo, além dos professores Giovanni e Sebastião Vitorino, ambos atuantes como músicos, e posteriormente atuando também como maestros, frente às apresentações e desfiles em outros distritos próximos e cidades (Foto 4: Banda da USM, Igreja Matriz de Bom Jesus do Itabapoana, em festa de agosto, anos de 1960) e em alvoradas nas celebrações anuais dos dias 1º de maio da USM. Muitos foram os músicos que se tornaram profissionais atuantes em corporações oficiais do Estado do Rio de Janeiro e em outras bandas e grupos musicais em cidades de maior expressão.  

Outra atividade regular na USM era a da igreja católica, localizada no topo mais elevado da USM, onde batizados, primeiras comunhões, ladainhas, missas e procissões eram realizados, além das celebrações ligadas ao culto em honra a Santa Maria. A religião atraía a participação das crianças e jovens, sob a orientação de catequisadoras e senhoras mães que se dedicavam com abnegação à sincera fé cristã.

Essas memórias, embora de caráter pessoal, estão bem registradas na mente de nós, conterrâneos que vivenciamos os bons tempos na USM, muitos que ainda que se interagem em contatos amiúde, após partirem para as realizações da vida. Foi uma rica e proveitosa experiência nos campos social, cultural, moral, religiosa e familiar, nos formatando para uma boa condição de cidadania e atuação em diversos campos profissionais.

A presença e atuação do seu responsável maior, proprietário e administrador, Sr. Jorge Pereira Pinto, era contínua nos diversos ambientes de trabalho, nas caminhadas que fazia pela rua central, interagindo com as crianças e jovens, trabalhadores e mães que encontrava nas suas andanças, conversando e ouvindo aqueles que encontrava. Essa é uma memória que muitos de nós ainda retemos em nossas mentes. Além de oferecer oportunidades de trabalho e residência na USM, provia transporte aos alunos que cursavam o ginásio em Santo Eduardo à noite. E para estudantes que queriam estudar em Campos dos Goitacazes, por exemplo, provia acomodações e alimentação no Patronato São José, do qual era mantenedor. Seus filhos, filha e netos (as) interagiam com todos em uma convivência fraterna e amiga, em um modelo de permuta recíproca de bons sentimentos que persistem em nossos corações.

Os jovens que atingiam a maioridade tinham oportunidades de trabalho na própria usina. Outros continuavam os estudos em outros centros, enquanto nossos pais prosseguiam na USM ou se mudavam para Bom Jesus e outras cidades do país, após suas aposentadorias. Como reflexo do ambiente benéfico na nossa infância e juventude na USM, nos sentíamos motivados para realizações em outros ambientes, para coroar o que conseguimos da experiência bem vivida na USM. Muitos dos profissionais da USM, como marceneiros, eletricistas, torneiros, músicos, jogadores de futebol etc., trabalharam em diversas cidades do Estado do Rio de Janeiro. Muitos se dedicaram aos estudos superiores no Brasil e no exterior, atuando, em diversos tempos, nas áreas de administração, direito, educação, política, medicina, economia, contabilidade, veterinária, professores de universidades federais e privadas, áreas da ciência, diretorias de órgãos públicos e de empresas multinacionais e organizações internacionais.

Nesses tempos em que estamos distantes em outros locais, mantemos as memórias da vida que compartilhamos com nossos colegas e amigos conterrâneos, nos comunicando por meio dos recursos tecnológicos atuais. Revivendo nossas ricas memórias, nos alegramos ao saber das festas de comemoração de 1º de maio, das festas juninas no “Espaço dos Vitorinos” e, com a Reinauguração do Teatro Conchita Rodrigues, resultado do esforço e trabalho perseverante de bons amigos e conterrâneos. É um momento feliz para nossos corações, pois ainda mantemos os vínculos com familiares queridos, residentes na nossa terra natal e arredores. Que Deus abençoe a todos nós, na gratidão que devemos manter em nossas vidas pela união fraternal que temos!

Foto 2

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