domingo, 1 de março de 2015

Jumento Sem Mãe




Tarcísio Borges
 


Vez ou outra aparece um jumento sem mãe. É fácil reconhecê-los. Qualquer mãe diz: “Meu filho, vá pelo mundo fazendo amizades, tratando bem as pessoas, cuidando e respeitando. Entre e saia com dignidade. Pense no eterno retorno”. O jumento sem mãe procede ao contrário. Donde se conclui (noves fora inclusive) que, além de jumento, nunca teve mãe.

Apareceu um exemplar na cidade nos últimos tempos. A Providência levou o espécime a testar o conhecimento do pessoal do botequim, em reiteradas provocações.

Jumento Sem Mãe (ou Jumento, para os mais próximos) deu para perguntar pelos nossos amigos e conhecidos, após dois goles de cerveja. “Você conhece Hegel?” – disparou o Jumento. Ora, esse menino, o Hegel, estudou com quase todos nós. Jogava bola antes de entrar em sala. Certa vez disse: “Suei até no rêguel!” – daí o apelido. Parece que Rêguel entrou para as forças ocultas, e escreveu um livro sobre a fenomenologia do espírito, tratando de caboclo brigador, velhos e giras. Era bom de bola.

Noutra ocasião, Jumento perguntou pelo Max –depois de beber dois goles de cerveja, e para menosprezar a moçada. Como sempre, deu n’água, causa de que todos sabiam a resposta. Maximiliano morava na outra rua. Reclamava da falta de dinheiro – O Capital. Sensato, avaliava o tempo todo se fazia a coisa certa: “Mais valia ter ido roubar mangas na chácara do Seu Cláudio”.

Jumento Sem Mãe – perguntador incansável – não se dava por vencido. Abandonara isbá de mujique numa metrópole e viera ter numa datcha no melhor ponto da cidade. Recebia favores, pendurava a conta no boteco, ganhava quitutes dos vizinhos. Não retribuía. A ingratidão – teimosia de jumentos – não lhe permitia ver a melhora no padrão e no estilo, e Jumento Sem Mãe seguia escoiceando.

Certa vez, a coisa esteve lamacenta no trecho. Jumento Sem Mãe fazia críticas duras ao nosso melhor quarto zagueiro do campeonato rural, em pleno boteco repleto de respeitáveis consumidores. Todos temiam a chegada iminente do craque, e Jumento não parava de falar mal do rapaz. Eis que na esquina surge Kant – o melhor zagueiro do futebol de várzea da região. Jumento continuava maldizendo. “Vai dar problema” – disse o dono do boteco.

Por absoluta falta de espaço (essa conversa vai longe), a crítica da razão pura e a crítica da razão prática ficarão para outra oportunidade – tão certa quanto as malcriações do indizível Jumento Sem Mãe.



Tarcísio Borges, nascido em Bom Jesus do Itabapoana, é médico e escritor

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