Jornal fundado por Ésio Martins Bastos em 25 de dezembro de 1946 e dirigido por Luciano Augusto Bastos no período 2003-2011. E-mail: onortefluminense@hotmail.com
quarta-feira, 31 de agosto de 2016
O PRIMEIRO PIANO DO VALE DO ITABAPOANA
Vera Maria Viana Borges
“Na terra somos caminhantes, sempre prosseguindo... Isso significa que temos de nos manter em movimento,
caminhando adiante. Assim esteja sempre insatisfeito com o que você é se quiser alcançar o que você não é. Se estiver
satisfeito com o que você é, você parou. Se disser “é suficiente”, você está perdido. Siga andando, movendo-se para a frente,
tentando atingir a sua meta. Não tente parar no meio do caminho, voltar ou desviar-se dele.” (Sto Agostinho - Sermão, 169-18)
Meus bisavós, Feliciano de Sá Viana e Ambrosina Justa de Sá Viana não esmoreceram, jamais perderam o
entusiasmo. Chegaram à Fazenda da Prata, oriundos das Minas Gerais em 1862. Casal cheio de vitalidade, ânimo e alegria,
pôs mãos-à-obra, dedicando-se à agricultura, atravessando épocas de vacas gordas pelo desempenho auspicioso do trabalho e
dedicação a que se empenharam.
Via crescer a numerosa prole em meio a muita fartura proveniente de seu trabalho na terra, acalentando o sonho de
educar todos os filhos proporcionando-lhes cultura e principalmente almejava que aprendessem música para encher de alegria o seu lar e aquele rincão distante...
Sonhava comprar um piano, mas para tal aquisição era necessário ir à Corte. Preparando-se e indo até lá adquiriu o
instrumento, um piano de cauda; tratou de despachá-lo até o Porto da Limeira, que já funcionava desde 1864, a uns mais ou
menos dez quilômetros da atual localidade de Ponte do Itabapoana, no rio Itabapoana, ligando este ao mar em Barra do
Itabapoana. De lá veio até Bom Jesus de carro-de-boi e para dar continuidade à viagem, não havendo estradas, escravos
tiveram de empunhá-lo e levá-lo até Arrozal de Sant'Ana, mais precisamente na Fazenda da Prata, onde residiam os Sá Viana.
Os filhos cheios de curiosidade rodearam o instrumento, uma grandiosíssima novidade na região. Feliciano por sua
vez anunciava a necessidade de um mestre, corria de boca em boca a notícia... Sentia-se feliz mas ao mesmo tempo triste
vendo o piano ali, mudo... Homem de expediente já providenciava alguém para ministrar aulas e contratado já estava um
Professor de Escolaridade que viria ensinar leitura, contas e conhecimentos gerais a todos.
Entre seus criados, havia um escravo vindo de Diamantina, que cochichara aos outros, saber tocar piano. Chegando a
alvissareira notícia aos ouvidos do patrão, este dando-lhe roupas limpas e decentes, pediu que tomasse um banho e se
aprontasse devidamente. Quando adentrou o salão da Casa Grande, estava irreconhecível, de paletó e gravata. Emoção
enorme aos primeiros acordes que quebraram o silêncio daquelas matas, daqueles cafezais, esfuziando aqueles olhares
expectadores, encantando aqueles ouvidos ávidos de uma boa e bem animada melodia. O contentamento foi geral.
Passaram os Sá Viana a organizar saraus, atraindo pessoas da vizinhança e alegrando sobremaneira toda a família que
se organizava para receber os que vinham dançar e apreciar as bem executadas valsas da época. Nestas reuniões semanais,
serviam fartíssima mesa das mais finas e variadas iguarias, onde todos comiam a vontade.
Com a chegada do Professor “João Lino”, o início dos estudos e a surpresa maior: ao ver o “piano” disse que ele
poderia também dar conhecimentos de música e ensinar os mais diversos instrumentos. Iniciou-se assim a realização do sonho
do fazendeiro. Os filhos, Romualdo, Eulália, Aureliano, Adélia (Sinhazinha), Elpídio, Henrique, Malvina, Adolfina, Mulata,
Adelaide, Diana, Abílio e Julinho se entusiasmaram e logo formaram conjunto com clarinetas, trombones, contrabaixos, Sax
Horn, requinta e piano. Sobressaíram, Romualdo na clarineta, Julinho no cantrabaixo (ainda jovem faleceu na arquibancada
de um circo onde tocava, atingido por uma bala perdida, disparada numa briga do lado de fora), Elpídio no trombone (a maior
parte de sua vida foi dedicada ao contrabaixo), Henrique no Sax Horn, Adelaide no piano e requinta; Mulata dedicou-se um
pouco ao piano e gostava de cantar.
Cada filho que se casasse recebia de dote um sítio e um lote de burro. Não eram apenas saraus e brincadeiras
trabalhavam duro, estudavam e se dedicavam aos estudos de música e dos diversos instrumentos.
Mudando-se para a Fazenda União, mais próxima de Rosal (hoje propriedade do Sr. Carlowe Junger Vidaurre), ficou
mais próximo de seu amigo e compadre Luís Tito de Almeida (Lulu), sogro de seu filho Elpídio que desposara Elzira.
Tocavam em ladainhas, casamentos e festas em geral, até que um dia reuniram-se Lulu (Luís Tito de Almeida),
Elpídio de Sá Viana, Durval Tito de Almeida, Custódio Soares de Oliveira, Sebastião Magalhães e Elias Borges, iniciando o
trabalho de formação da Corporação Musical 14 de Julho, que tem como data oficial de sua fundação, 14 de julho de 1922.
Continua firme e vibrante com retretas nas praças, espalhando vida e alegria por onde passa, com suas marchas, dobrados e
peças do cancioneiro popular.
Constantemente havia encontro das Bandas. No casamento de Mulatinha, neta de Feliciano, filha de Romualdo,
compareceram as Bandas do Sr. Lulu e do Chico Gomes, clarinetista dos bons e que também formara uma banda com
elementos de sua família, lá na Barra Funda. Elemento de uma Banda tocava também na outra; foram se casando e misturando
as famílias e finalmente todos se tornaram parentes, acabando praticamente numa só família.
Os Sá Viana se espalharam pelos dois lados do vale do Itabapoana, fazendo frutificar a vocação musical que lhe estava
impregnada no sangue e os conhecimentos que se adquiriram através daquele primeiro piano que com grande ideal foi trazido
para esta região.
Elpídio de Sá Viana organizou na década de 40 uma filarmônica em São José do Calçado. Inicialmente contou com
cinco de seus filhos: Luís, Antônio, Feliciano (Neném), Hélio e Geraldo, todos excelentes músicos e procurou completar o
grupo com elementos da localidade a quem ministrava aulas. A filarmônica recebeu o nome de “Euterpe São José”, mais tarde
passou a “Lira 19 de Março”, apresentando-se impecavelmente uniformizada e executando sempre com perfeição o vasto e
riquíssimo repertório.
A descendência de Feliciano e Ambrosina continua acalentando e realizando o seu grande sonho... Que Deus os
acolha em sua Glória como recompensa pela herança deste dom tão harmonioso quanto melodioso. Erguendo as taças da
gratidão e do amor, prestamos-lhes uma consagradora homenagem pela determinação e garra com que impregnaram nossa
gente e nossa terra com a paixão e o ardor deste ideal, assegurando que continuaremos mantendo viva a chama de seu lindo
sonho que ainda nos embala com suaves canções e que com a graça de Deus assim o será para todo o sempre.
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