sábado, 22 de junho de 2019

PARA ONDE VAI O CAMINHÃO DE LEITE

            
                          Delton de Mattos


NOTA DE O NORTE FLUMINENSE: O bonjesuenses Delton de Mattos é considerado um dos gênios de nossas letras. Sempre esteve junto ao nosso jornal, desde o nascimento deste em 25 de dezembro de 1946, com Ésio Bastos. Ao final, postamos um texto sobre a importância de Delton de Mattos para os estudos de tradução no país. O artigo que segue foi publicado em nosso jornal em 2005.



Para ser dono ou motorista de caminhão de leite, e desempenhar a contento suas funções sociais, é preciso reunir uma série de qualidades, difíceis de serem encontradas numa só pessoa.

Naturalmente sua principal missão é transportar o produto todos os dias, chova ou faça sol, com a máxima pontualidade e segurança. Sempre achei apaixonante esse humilde e aventuroso trabalho, e por isso pedi permissão a um, dentre outros que existem em Bom Jesus  para acompanhá-lo durante toda a sua jornada, metido na boleia do seu prestimoso veículo.

Trata-se do conhecido e bem humorado Chico Lobão, que faz esse serviço há mais de vinte anos, e domina por completo os segredos e macetes da sua curiosa rota Seu caminho. Sai da cidade mais ou menos às sete da manhã, e vai cumprir um itinerário arrevesado e sinuoso, que se torna mais característico depois de percorrer as estradas bem carroçáveis, quando penetra aos solavancos em modestos caminhos sem conserva, às vezes meras trilhas desenhadas pelas patas do gado.

Ele resfolga e tremula nos sopés dos morros, recurvando-se aqui e ali pelas dobras da paisagem, ou bordejando as elevações mais acentuadas, sobre as quais se localizam sítios e fazendas de menor valor, mas que também produzem com regularidade os seus litrinhos de leite. Nesses lugares de difícil acesso, os latões de leite descem pelas veredas em lombos de burro, até chegarem ao ponto convencionado da recolha, onde o caminhão sempre aparece na hora marcada, para alegria e descontração das pessoas que o esperam e que, por um motivo ou outro, precisam da sua preciosa ajuda.

Ele é o protótipo de quebra-galho e de pau pra toda obra. Com atenção e paciência, acolhe de bom grado as mais diversas encomendas dos peões e suas famílias, desde a ração e remédios para o gado até peças de roupas, que em geral precisam de ser trocadas até que se ajustem ao corpo rebelde do pretendente. Às vezes se vê obrigado a fazer papel de médico ou curandeiro, recomendando chás de ervas e medicamentos a doentes menos graves, e conselhos e "boas palavras" a quem se apresente alterado e nervoso. E faz tudo isto com exímia rapidez, pois o tempo urge, e ainda há muita gente que o aguarda nos próximos pontos de recolha.

Quando já deu partida de um determinado lugar, pode ser que lhe grite de repente um retardatário: "Espera, espera aí, Me leva até o asfalto, é urgente". A essa altura já esternos,"como sardinha em lata na boleia, quatro pessoas além do motorista: eu próprio, uma senhora meio gorda exalando um perfume forte, a mãe esquálida e sofrida que leva rios braços uma criança doente (quantos anos terá? Uns vinte e poucos, parecendo cinqüenta...) e a professorinha ativa e de olhos inteligentes, que vai ensinar os meninos da roça, em sua escola isolada, perdida na solidão.

Penso comigo: ganhei o dia, aí está ela. Como eu a conheço e admiro, criatura recoberta de luz, ungida pelos deuses e coroada de sonhos, sofredora idealista e mal paga, que se sacrifica no altar da esperança, dando-se inteira a troco de ilusões.

Ó heroína mor da pátria, inclino-me envergonhado e respeitoso diante de sua grandeza que ninguém reconhece, pois somente você, você e mais ninguém, multiplicada às milhares por esse Brasil afora, poderá um dia tirá-lo galhardamente da opressão e da miséria. Mas o caminhão prossegue.

No seguinte ponto de recolha, há um cidadão em trajes extravagantes porém festivos, formando um contraste com uma leitoa preta amarrada pelos pés, que ele segura com cuidado através de uma corda. Deseja uma carona para os dois. "Não, diz o motorista. É proibido carregar porco junto com latões de leite". O homem fica desolado. É que a leitoa se destina a um banquete de casamento, a ser realizado naquele dia. "Se a leitoa não chegar a tempo vai estragar tudo", argumenta. "Então tá certo, vou arriscar, mas só desta vez, jogue a bichinha na carroceria, mas bem separada, viu?", resmunga o paciente e compreensivo Chico Lobão.

O homem ainda pergunta se já pode garantir mais um lugar na boleia para a noiva em pessoa, que está esperando no próximo ponto ali na frente. "Isto não vai poder, a boleia já tá lotada, tudo gente necessitada e importante, não tá vendo?", pergunta o motorista com uma ponta de humor.

Chego à conclusão de que não parece justo deixar uma noiva, com certeza toda vestida de branco, embarcar na carroceria em companhia da leitoa preta, que mais tarde vai ser comida em sua festa. Mas quando me proponho a deixar a boleia, e ceder o meu lugar à noiva, para que o matrimônio se realize em paz, a senhora meio gorda acrescenta que não há necessidade, pois ela irá descer logo ali mesmo.

Só para continuar falando de animais, sem esquecer que o local do casamento é o Arraial dos Cabritos, não é que alguns quilômetros antes de chegar em ltaperuna alguém pede carona também para uma bonita ovelha amarela? "É hoje, volta a resmungar o leiteiro. De minha parte, suponho que não haverá problema, pois a ovelha, sendo mais limpa e civilizada do que a leitoa, certamente poderá ser conduzida ao lado dos latões de leite".

Mas parece que não é bem assim. Em todo caso, hoje a carroceria já está completamente lotada e o assunto fica para ser solucionado no dia seguinte. O leiteiro desempenha outros papeis de utilidade para os habitantes da região: é um bom transmissor de notícias importantes a quem não tenha rádio; portador de mensagens urgentes da cidade, e até de marmitas para alguém que trabalhe longe de casa; eficiente "pombo correio" entre os moradores das diversas localidades rurais; informante sério e de confiança que pode indicar, por exemplo, onde adquirir um reprodutor de raça, ou mesmo uma propriedade mais em conta, e assim ele estimula as atividades simples e criativas do homem do campo, ajudando a consolidar a economia pecuária da região, que em síntese é a própria razão de ser da nossa Bom Jesus de hoje.

2005

terça-feira, 20 de janeiro de 2015


Delton de Mattos - um pioneiro dos Estudos de Tradução


Atuou na universidade de Brasília como o pioneiro na formação do curso de Letras-Tradução. Todavia, ele é memorável por ter sido sua a iniciativa da publicação de 3 livros sobre tradutologia (talvez, a época da publicação, conceito ainda inexistente no Brasil):
  • Delton de Mattos (org.), A formação do tradutor em nível universitário. Horizonte, 1980.
  • Delton de Mattos (org..), Cultura e tradutologia. Thesaurus, 1983.
  • Delton de Mattos (org.), Estudos de tradutologia. Kontakt, 1981.

Somente pelos títulos do livros organizados podemos imaginar o quanto à época eles eram inovadores para a área de Letras e para os Estudos de Tradução.
Provavelmente, devem existir outros artigos e textos sobre o assunto de autoria de Delton Mattos. Uma pesquisa mais profunda sobre sua contribuição para os Estudos de Tradução no Brasil seria bem vinda.

Dennys Silva-Reis


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