Ontem, fui agredido com muitos cestos de lixo.
Hoje, roubaram mais areia, fruto de meu paciente trabalho de longos anos...
Envenenaram recentemente meu corpo, poluindo todo meu ser com mercúrio de uma aurífera e perdulária ganância!...
Encontrei, temporariamente, um defensor que os homens chamam de Ministério Público, que evitou minha liquidação rápida e de meu amigo Itabapoana, expulsando garimpeiros violadores. Traficaram com as terras de minha margem!...
Isso tudo sem falar no quase centenário despejo de dejetos esgotos, lamas, subprodutos de industrias, pústulas de hospitais e animais putrefatos), que suporto em nome do "progresso" das cidades que banho.
Uma (Muriaé) tem até meu nome; outra (Laje do Muriaé) me imita.
Muros, pontes e construções me desafiam cotidianamente.
Às vezes penso por que fazem isso comigo, se trago VIDA, ofertando água de meu corpo e alimentação para muita gente ingrata (maus pescadores!), que matam meus amigos peixinhos com bombas e arapucas infernais.
Até gases já usam!...
Que seriam desses "caras" sem mim? Será que não manjam isso? Ou é a suprema ignorância dos ignorantes?...
Quando me alio às chuvas e me revolto em forma de enchentes, vejo assacadas contra mim toda espécie de calúnias, injúrias e difamações possíveis.
Sirvo nessas épocas de bode expiatório para gastarem mais verbas públicas nas "calamidades" com "minha agressão", quando o objetivo é apenas limpar meu leito.
Sou obrigado a ouvir besteiras como:
"É preciso fazer um dique neste rio!"
"E necessário diminuir-lhe o leito e murar-lhe as margens!"
"Por que não rebaixam esse rio para mais facilmente ser dominado?"
"Tirem-lhe as ilhas!..."
Tudo isso para uma solução tão fácil: bastaria o respeito mútuo.
Eu correria pelos caminhos que a natureza me deu, ofertando tudo que tenho, sem nada pedir de volta.
Já repararam que caminho sempre em frente!
Sujam-me as águas e depois gastam grandes somas de dinheiro para depurá-las.
Não me dão direito ao legítimo direito de defesa da VIDA! Quero um júri verdadeiramente popular!
Pessoas, presumivelmente cultas, me enaltecem de manhã e me violam à noite.
Dupla personalidade humana... Grossa hipocrisia tenho que assistir!..
Até o chamado poder público cria "amigos" para mim, com nomes esquisitos de "Ceca”, "Serla"', de "Feema" etc, para me "Proteger", mas pouco fazem por mim.
Crio até problema jurídico. Até hoje não sei se sou Federal, Estadual ou Municipal. Cada órgão me rejeita à medida que protesto e peço proteção
Por tudo isso não queria ser inanimado" como dizem os homens que me circundam!..
Tenho mais vida e mais inteligência e sou mais compreensivo com eles do que eles comigo e com suas próximas gerações.
Corro para o mar, que é grande! As pessoas fazem coisas pequenas!
Estou certo de que para mim só me restam poucos anos de vida...
Morrer a cada minuto, a cada hora, a cada dia, a cada mês, a cada ano, é o meu derradeiro destino, definhando o meu corpo pelo "progresso" que a cidade me transmitiu, enfraquecendo progressivamente meu corpo e minha alma. Só que minha morte "provocada" trará outras mortes: a dos peixinhos que tanto amo; das flores deslumbrantes que rego; da relva que me acolhe e me conforta; dos pássaros que saciam sua sede em minha águas!...
Minha suprema vingança será no dia em que eu faltar.
Então, sedentos, muito "seres animados" durarão pouco.
Mas restará, certamente, minha amiga chuva, (mesmo um pouco ácida!), para escrever o meu epitáfio no cemitério pedregoso e fétido, povoado de outras aves de rapina:
"Deu vida a quem só trabalhou pela sua morte".
Homenagem crítica de um itaperunense ao meio ambiente, aos rios brasileiros e, em particular, ao rio Muriaé, que banha a cidade.
Itaperuna, fevereiro, 1988.
P.S.: A crônica foi citada e utilizada no ensaio acadêmico intitulado
O Rio Muriaé sob a lente da Ecologia dos saberes, apresentado ao programa de pós-Graduação Strito Sensu, Mestrado em Ensino, da Universidade Federal Fluminense; Instituto do Noroeste Fluminense de Educação Superior, como requisito final para aprovação na disciplina Epistemologia e Educação, ministrada pela Professora Dra. Jacqueline Souza Gomes.
Mestrando, Henrique Zarpellon Martin, em julho de 2017.
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