sexta-feira, 31 de março de 2023

OCTACILIO DE AQUINO, AMIGO E CHEFE





Delton de Mattos 



Nada melhor e mais oportuno na Festa de Agosto do que homenagear a personalidade de Octacilio de Aquino, nosso inesquecível “Amigo e Chefe”, conforme era carinhosamente chamado. Tranquilo e silencioso, de aparência modesta mas elegante e nobre, preciso e competente, foi uma figura obrigatória na vida bonjesuense, querido e admirado, sobretudo por aqueles que tinham a dádiva de conhecê-lo de perto, de apreciar todas as dimensões da sua inteligência, os requintes e os cabedais da sua cultura, que esbanjava com sutileza na atmosfera simplória e limitada do seu tempo.

Tive o privilégio de entrar em contato com ele ainda nos meus 12 anos, quando dava os primeiros passos na velha Bom Jesus, com as ruas sem calçamento da Praça Governador Portela, sobre as quais rodavam livremente carros de bois, pisoteavam cavalos dos moradores da roça ou tropas de burros transportando café. Quase na confluência com a rua dos Mineiros ficava a Farmácia Normal de Antônio Dutra, ponto obrigatório  de encontro das principais figuras da cidade, que constituíam o poder político do local, com as características cidadãs daquele tempo, e também uma verdadeira confraria de intelectuais, da qual faziam parte, dentre outros, Padre Mello, Columbino Teixeira, César Ferolla, o jovem Romeu Couto e sem dúvida Octacilio de Aquino. 

A presença do erudito anfitrião, ao mesmo tempo boticário notável bibliófilo, leitor inveterado, dono da maior biblioteca humanística do Vale do Itabapoana, catalisava os interesses culturais de tal conjunto harmonioso, de que pontilhava aquele jovem e brilhante advogado, capaz de ler fluentemente autores franceses e espanhóis no original e entender com facilidade as estruturas sintéticas da língua latina.

Foi nessa atmosfera privilegiada da antiga Farmácia Normal que um menino da roça, vindo da Serra do Tardin, para lavar vidros a serem reutilizados, e ao mesmo tempo aprender a caminhar nos rumos de uma futura profissão, saboreava, nas horas vagas, a sorte de poder ouvir, encostado num canto do balcão, conversas literárias tão criativas, verdadeiras lições de filosofia e bem vernáculo, colóquios generosos e sem pressa, sobre os mais diversos assuntos. 

Segundo me é dado lembrar, naquela altura Octacilio escrevia um livro de poesias e trabalhava no projeto de um novo vocabulário do idioma, obras estas de que nunca mais ouvi falar depois de ter saído de Bom Jesus em 1947. De concreto mesmo sobreviveram os magníficos editoriais escritos às dezenas para a nossa imprensa, que hoje repousam no silêncio das coleções dos jornais porventura ainda existentes, quase sempre danificadas por traças e cupins, ou então, para maior ventura dos que tenham paciência e tempo, catalogadas e conservadas nos modernos microfilmes da Biblioteca Nacional. 

Quanto à sua poesia, é sabido que lograva alto conceito da parte dos melhores críticos, sem enveredar pelos caminhos turbulentos das tendências modernas. 

Durante um bom tempo Octacilio de Aquino publicou, sob o pseudônimo de Marquês de Tal, condizente com a sua nobre figura, uma série de sonetos bem humorados compostos em setissílabos, comentando fatos conhecidos da época, em estilo simples e escorreito, não raro pitoresco e quase prosaico, com laivos de ironia filosófica, encimados por breves dísticos que indicavam ao leitor assunto a ser tratado.

Em sintética apreciação, divulgada em São Paulo na revista Alliance, de cultura franco-brasileira, em agosto de 1949, Romeu Couto o classificou como “Poema Bissexto”, seguindo a proposta de Manuel Bandeira na conhecida “Antologia de poetas brasileiros bissextos contemporâneos”, que reuniu composições líricas de Aurélio Buarque de Holanda, Euclides Cunha, Gilberto Freyre, Peregrino Júnior, Tristão de Ataide e outros nomes do mesmo porte. Transcrevo aqui as judiciosas palavras de Romeu Couto, comparando o soneto “Ruth” de Octacilio de Aquino com o de Olavo Bilac, sobre o mesmo tema bíblico, e demonstrando com toda precisão que os versos do nosso conterrâneo são melhores: “Poeta Bissexto, pois, rigorosamente bissexto é o meu amigo Octacilio de Aquino, o qual, filho mais amoroso do que nós outros, lá continua em Bom Jesus do itabapoana, sem a necessária capacidade de ingratidão para abandonar a comum terra natal, de onde nos brinda de largo em largo, com sua bissextíssima produção.

A qualidade de sua poesia, porém, como alias de tudo que lhe sai das mãos é admirável. Um dos seus últimos sonetos, Ruth, chega a ser primoroso. Segundo penso, Bilac, o príncipe, não fora mais feliz, cerca de um quarto de séculos antes, ao explorar o mesmo tema.” Encerro aqui com o primoroso soneto de Octacilio, digno de figurar em qualquer antologia:

Chegas bem tarde: em todos os moinhos
Já se acumula o pão para os celeiros;
Já descansam, no solo, os malhadeiros,
Neste trigal e nos trigais vizinhos...

E o que ficou, alem de alguns espinhos,
à passagem dos últimos ceifeiros,
são migalhas, inúteis aos moleiros,
desprezadas aos vermes, nos caminhos...

Mas desse pouco, em breve, em tuas mãos,
No que apanharam, ceifadora eleita,
A trabalhar, talvez por todos nós,

Que fartura de espigas e de grãos!
Foi, até hoje, a mais feliz colheita
Que o mundo viu, nos campos de Booz...

Delton de Mattos é Doutorado em letras, Professor de Pós graduação da Universidade de Brasília (Unb)

Nenhum comentário:

Postar um comentário