Nada melhor
e mais oportuno na Festa de Agosto do que homenagear a personalidade de
Octacilio de Aquino, nosso inesquecível “Amigo e Chefe”, conforme era
carinhosamente chamado. Tranquilo e silencioso, de aparência modesta mas
elegante e nobre, preciso e competente, foi uma figura obrigatória na vida
bonjesuense, querido e admirado, sobretudo por aqueles que tinham a dádiva de
conhecê-lo de perto, de apreciar todas as dimensões da sua inteligência, os
requintes e os cabedais da sua cultura, que esbanjava com sutileza na atmosfera
simplória e limitada do seu tempo.
Tive o
privilégio de entrar em contato com ele ainda nos meus 12 anos, quando dava os
primeiros passos na velha Bom Jesus, com as ruas sem calçamento da Praça Governador Portela, sobre as quais rodavam livremente carros de bois,
pisoteavam cavalos dos moradores da roça ou tropas de burros transportando
café. Quase na confluência com a rua dos Mineiros ficava a Farmácia Normal de Antônio
Dutra, ponto obrigatório de encontro das
principais figuras da cidade, que constituíam o poder político do local, com as
características cidadãs daquele tempo, e também uma verdadeira confraria de
intelectuais, da qual faziam parte, dentre outros, Padre Mello, Columbino
Teixeira, César Ferolla, o jovem Romeu Couto e sem dúvida Octacilio de Aquino.
A presença do erudito anfitrião, ao mesmo tempo boticário notável bibliófilo,
leitor inveterado, dono da maior biblioteca humanística do Vale do Itabapoana,
catalisava os interesses culturais de tal conjunto harmonioso, de que
pontilhava aquele jovem e brilhante advogado, capaz de ler fluentemente autores
franceses e espanhóis no original e entender com facilidade as estruturas
sintéticas da língua latina.
Foi nessa
atmosfera privilegiada da antiga Farmácia Normal que um menino da roça, vindo
da Serra do Tardin, para lavar vidros a serem reutilizados, e ao mesmo tempo
aprender a caminhar nos rumos de uma futura profissão, saboreava, nas horas
vagas, a sorte de poder ouvir, encostado num canto do balcão, conversas
literárias tão criativas, verdadeiras lições de filosofia e bem vernáculo,
colóquios generosos e sem pressa, sobre os mais diversos assuntos.
Segundo me é dado lembrar, naquela altura
Octacilio escrevia um livro de poesias e trabalhava no projeto de um novo
vocabulário do idioma, obras estas de que nunca mais ouvi falar depois de ter
saído de Bom Jesus em 1947. De concreto mesmo sobreviveram os magníficos
editoriais escritos às dezenas para a nossa imprensa, que hoje repousam no
silêncio das coleções dos jornais porventura ainda existentes, quase sempre
danificadas por traças e cupins, ou então, para maior ventura dos que tenham
paciência e tempo, catalogadas e conservadas nos modernos microfilmes da Biblioteca
Nacional.
Quanto à sua
poesia, é sabido que lograva alto conceito da parte dos melhores críticos, sem
enveredar pelos caminhos turbulentos das tendências modernas.
Durante um bom
tempo Octacilio de Aquino publicou, sob o pseudônimo de Marquês de Tal,
condizente com a sua nobre figura, uma série de sonetos bem humorados compostos
em setissílabos, comentando fatos conhecidos da época, em estilo simples e
escorreito, não raro pitoresco e quase prosaico, com laivos de ironia
filosófica, encimados por breves dísticos que indicavam ao leitor assunto a ser
tratado.
Em sintética
apreciação, divulgada em São Paulo na revista Alliance, de cultura
franco-brasileira, em agosto de 1949, Romeu Couto o classificou como “Poema
Bissexto”, seguindo a proposta de Manuel Bandeira na conhecida “Antologia de
poetas brasileiros bissextos contemporâneos”, que reuniu composições líricas de
Aurélio Buarque de Holanda, Euclides Cunha, Gilberto Freyre, Peregrino Júnior,
Tristão de Ataide e outros nomes do mesmo porte. Transcrevo aqui as judiciosas
palavras de Romeu Couto, comparando o soneto “Ruth” de Octacilio de Aquino com
o de Olavo Bilac, sobre o mesmo tema bíblico, e demonstrando com toda precisão
que os versos do nosso conterrâneo são melhores: “Poeta Bissexto, pois, rigorosamente
bissexto é o meu amigo Octacilio de Aquino, o qual, filho mais amoroso do que
nós outros, lá continua em Bom Jesus do itabapoana, sem a necessária capacidade
de ingratidão para abandonar a comum terra natal, de onde nos brinda de largo
em largo, com sua bissextíssima produção.
A qualidade de sua poesia, porém,
como alias de tudo que lhe sai das mãos é admirável. Um dos seus últimos
sonetos, Ruth, chega a ser primoroso. Segundo penso, Bilac, o príncipe, não
fora mais feliz, cerca de um quarto de séculos antes, ao explorar o mesmo
tema.” Encerro aqui com o primoroso soneto de Octacilio, digno de figurar em
qualquer antologia:
Chegas bem tarde: em todos os moinhos
Já se acumula o pão para os celeiros;
Já descansam, no solo, os malhadeiros,
Neste trigal e nos trigais vizinhos...
E o que ficou, alem de alguns espinhos,
à passagem dos últimos ceifeiros,
são migalhas, inúteis aos moleiros,
desprezadas aos vermes, nos caminhos...
Mas desse pouco, em breve, em tuas mãos,
No que apanharam, ceifadora eleita,
A trabalhar, talvez por todos nós,
Que fartura de espigas e de grãos!
Foi, até hoje, a mais feliz colheita
Que o mundo viu, nos campos de Booz...
Delton de Mattos é Doutorado em
letras, Professor de Pós graduação da Universidade de Brasília (Unb)
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