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Octacílio de Aquino |
Amigo e Chefe:
Ponhamos a esta carta, por lhe falar melhor, um título: A carta das coincidências. Vá contando.
Mal havia eu sido entregue do mais recente estudo biográfico sobre Monteiro Lobato, o rádio nos trazia a contristadora notícia de sua morte. Essa coincidência torna mais interessante e mais oportuno o livro.
Mas não fica aí a coincidência.
O autor - Alberto Conti - morreu antes de concluída a obra. Temos, pois, um desdobramento de impressões. Dias atrás era a morte glorificando a vida, a glória póstuma automaticamente assegurada ao escritor imenso, o maior do Brasil do nosso tempo, um dos mais completos do mundo.
Agora é a paz das sombras que nos fala, dizendo sobre as qualidades mestras de quem soube viver intensamente, através de um estilo que não cede ao de ninguém e através de um patriotismo que chegou até ao sacrifício próprio, até aos mais fundos sofrimentos da alma, no considerar as questões essenciais da terra e do povo brasileiro.
Monteiro Lobato não pertencia à família nem a São Paulo nem ao país: pertencia ao patrimônio universal dos valores humanos. Lobato foi propriamente uma luta na guerra, que ainda hoje se desenvolve, pela emancipação intelectual e econômica do Brasil, foi ele uma das mais bem pelejadas batalhas. Marcou um episódio gigantesco em nossa história.
Todas essas coisas, amigo e chefe, já eu meditava na imprensa quando ele ainda estava vivo. Essa dívida da minha admiração amortizava-se, portanto, em muito, quando o publicista ilustre ainda se consagrava de todo à herculana tarefa de transmudar os métodos literários, fundo e forma, até então seguidos entre nós, tarefa que, de algum modo lembrava alguma coisa de Eça de Queiroz.
Mas o que me acode à memória, antes de tudo, é a noite grandiosa em que Ruy, no Teatro Lírico, iniciava a sua anunciada e esperadíssima conferência sobre a questão social, representando o Jeca Tatu, do livro Urupês. Que alvoroços não tive! Eu era Ruy até à medula. A paixão liberal que empolgava o país era a minha escola. Andava eu aturdido com as primeiras idéias, ainda à procura de uma expressão e de contornos exatos.
Ao contrário de Barthou, que via no Direito uma porta aberta para a política, batia eu às portas do Direito, animado pelos mais santos impulsos das propagandas de então. Tais eram os gestos do meu espírito, na ocasião em que o país, conheceu melhor, sob o prestígio incontestável de Ruy, a criação incomparável do Jeca Tatu. Não me habituava ao ostracismo que os confabuladores da política oficial votavam ao maior dos nossos concidadãos.
Parecia-me estranho que Ruy Barbosa precisasse de pleitear a Presidência da República, ele, advogado exímio dos escravos, ele, que abalara o trono, Ruy, o expoente da segunda Conferência de Haia, o lidador incansável que acabava de conseguir, nos meios nacionais, um reviramento completo da opinião, conduzindo e levando a bom termo a jornada civilista. Ruy - com a palavra João Mangabeira -, o estadista da República.
Pouco depois as livrarias estrelejavam, ostentando a 4ª edição dos Urupês. Corri à Garnier, donde saí sobraçando, solene, preciosidade. Daí para cá, Monteiro Lobato, definitivou-se em minha admiração. Ensebei-lhe o livro, de tanto que li e consultei, respingando-lhe vocábulos e locuções, modismos, torneios de linguagem, construções refertas de novidade e gosto, e, mais do que tudo, a maneira de representar os temas quer os de profundeza, quer os de simples artigos ou contos leves (das Bucólicas, por exemplo).
O mundo continuou a dar voltas. Ruy não chegou ao Catete, Lobato não chegaria à Academia Brasileira de Letras: pela derrota, na primeira vez, pela desistência, na segunda, pela recusa formal na terceira e última. O espírito também cria calos, como as mãos dos que trabalham no eito...
Tempos depois ninguém falava em petróleo sem pensar em Lobato (o escritor) e em Lobato (a terra, a primeira a nos dar um poço). Outra coincidência, que o próprio Lobato ressaltava - O meu poço, dizia jovialmente referindo-se àquele trato do território baiano.
E publicou exaustivos trabalhos sobre o petróleo. Apaixonou-se. Foi além das medidas. Resultado: processo, condenação, cadeia, desalento, exílio na Argentina, regresso à pátria. Por fim, ei-lo completamente envolto na questão social. Comunista?
Dizia-se... Talvez não, suponhamos, desejamos que tenha sido apenas um socialista a seu modo, como chegou a ser, sem tirar pelos figurinos, um estilista elegante e sóbrio, um pensador eminente, um contista original e primoroso.
Terminemos a carta, fixando mais uma coincidência, a maior de todas. Ei-la. Centralizando-o no exórdio de uma conferência notável, a questão social apresentou a glória de Monteiro Lobato. A questão social havia também de lhe apresentar a morte. A conferência esperou a vida. E 29 anos depois, Monteiro Lobato, que lhe havia sido o exórdio, formava-lhe a peroração. Morreu quando devia morrer? Difícil a resposta. O certo é que parece ter sido para si mesmo que ele escreveu um dia: "tristes os que aprendem nos livros, dentro dos gabinetes! Um só livro existe: a vida; um só gabinete: a natureza". Se perguntarem qual o melhor livro de Monteiro Lobato, responderei: a sua vida. Vida que refletiu a natureza de sua terra, da cidade aos sertões, e, sobretudo e sobremodo, até certa altura, a alma do Brasil.
E é quanto lhe pode dizer, glorificando o passado, o seu atento admirador, Octacílio.
Maio de 1949
(páginas 120/123)