Recordemos a admirável página de Eça, uma das mais de ouro entre os seus Contos.
Encontrava-se havia mais de sete anos, Ulisses, "o mais sutil dos homens", entre as magnificências de Ogigia, entregue à hospitalidade doce da ninfa Calipso, deusa e amante. Nada lhe faltava ali, onde tudo era deslumbramento e placidez, fartura e imortalidade certa.
Seus pensamentos, no entanto, voavam para Ítaca, onde havia deixado esposa e filho.
Uma tarde, ao cabo de uma dessas saudades longas em que, dia por dia, mergulhava o inconsolável guerreiro, desce à ilha encantadora, que o acolhera - após o naufrágio de sua grande nau, de proa rubra-, um deus, que o procurava. E o deus transmitiu a Calipso a decisão de Júpiter: deixasse voltar à pátria Ulisses o guerreador de Tróia.
A deusa obedeceu. Não podia senão obedecer. Mas, obedecendo, ainda insistia prometendo a Ulisses, para que ficasse, as armas extraordinárias que Vulcano mandaria especialmente forjar no ....
- Armas?- replicava o herói. Mas de que servem armas quando não há combates?
E, permitida a viagem de regresso, Ulisses derrubou essas árvores para uma jangada. E construiu a jangada. E pegou o instante da partida. Nunca - descreve o artista moroso - "nunca a ilha resplandecera com uma beleza tão serena, entre um mar tão azul, sob um céu tão macio". É, em meio a todo esse espetáculo de alegria e de suavidade, "tantos eram os frutos nos vergéis, e as espigas nas messes, que a ilha parecia ceder, afundada no mar, sob o peso da sua abundância!" Embora! O navegador ousado partiria mesmo...
A deusa, então, lançou ao herói o derradeiro e mais comovente apelo. Se lhe não fosse a esposa, a terna e tão lembrada Penélope, se não fosse o filho, o jovem e tão lembrado Telêmaco, ainda assim deixaria ele a ilha maravilhosa?
Sim, ainda assim Ulisses regressaria a Ítaca. Porque precisamente o que o fatigava em Ogigia era a perfeição extrema.
"Considera ó deusa, que na tua ilha nunca encontrei um charco; um tronco apodrecido; a carcassa dum bicho morto e coberto de moscas Zumbidoras. Ó deusa, há oito anos, oito anos terríveis, estou privado de ver o trabalho, o esforço, a luta e o sofrimento..."
Ah! que vontade, para o mortal glorioso, farto da paz Imensa da ilha sem defeitos, que vontade de "encontrar um corpo arquejante sob um fardo; dois bois fumegantes puxando um arado; homens que se injuriem na passagem de uma ponte; os braços suplicantes duma mãe que chora; um coxo, sobre a sua muleta, mendigando à porta das vilas!..."
E subia, torturadamente, o tom de seus queixumes. "Deusa, há oito anos que não olho para uma sepultura... Não Fosso mais com esta serenidade sublime! Toda a minha alma arde no desejo do que se deforma, e se suja, e se espedaça, e se corrompe..." Em Ítaca ele encontraria a fome e o desespero, o quadro triste da ignoralidade e da opressão, e, ao lado do poema incomparável da vida, quando há esse poema, toda a infinita amargura da torpeza humana...
Partia, enfim. Beijando-o, no minuto extremo, Calipso:
" - Quantos males te esperam ó desgraçado! Antes ficasses, para toda a imortalidade, na minha ilha perfeita, entre os meus braços perfeitos"...
Já Ulisses, porém, de pé no dorso da jangada, cortava as primeiras ondas do mar em que se espelhava o céu, voltando, assim, deliberadamente, "para os trabalhos, para as tormentas, para as misérias - para a delícia das coisas imperfeitas"...
E era isso, a desigualdade e o erro, era isso, a violência flagrante dos contrastes, isso, a mentira e as iniquidades dos homens e da sorte, mas isso que lhe desafiava o ideal de contribuir, lutando, pela verdade e pelo bem comum, era isso o que o seduzia na desditosa terra de seu berço, mas, também na terra que era tudo para o seu coração sonhador e de guerreiro...
Cada homem, dos que se formaram irresistivelmente para a luta franca, não reproduz, no quadro eterno as ambições e dos interesses, as ânsias e a atitude final do velho Ulisses?
Março de 1944
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