quinta-feira, 13 de julho de 2023

ANTÔNIO DE SOUZA DUTRA

 

Delton de Mattos 

A farmácia Normal era a sede de uma espécie de Academia de Letras de Bom Jesus do meu tempo. Uma academia informal e espontânea, presidida por Antônio de Souza Dutra, que tinha também a mais rica e selecionada biblioteca de todo o norte do Estado do Rio. Respirava-se ali uma atmosfera de filosofia e letras das mais estimulantes, na qual enquanto as manipulações dos remédios preoarevam a cura dos males do corpo, os colóquios literários tonificavam os anseios do espírito.

Tive a sorte de me aproximar desse círculo mágico  quando tinha apenas nove anos, e fora trazido da Serra do Tardin pelos meus pais, para melhorar as minhas primeiras letras. Nas horas livres, deveria ocupar-me de um incipiente trabalho na Farmácia Normal, lavando livros e entregando remédios. E embora tão novo e iletrado, criado na roça e em lombo de cavalos, sempre que podia ficava perto de Antônio Dutra e seus amigos, ouvindo conversas filosóficas e literárias.

Eu próprio nada podia entender daquelas memoráveis trocas de ideias, isto era certo. Mas também era certo que sentia por elas uma irresistível afinidade, uma inexplicável atração, um prazer infantil e ousado, que  se sobrepunha a qualquer outro interesse comum à minha idade. Alguns anos depois, quando já frequentava o Ginásio Rio Branco, Antônio Dutra e seus amigos passaram a desempenhar papel muito mais importante na minha formação. Naquele tempo era muito difícil adquirir um livro em Bom Jesus. Em geral era preciso encomendar do Rio, ou então na livraria "Ao Livro Verde", de Campos, através do comissário que ia de ônibus pela manhã e voltava à noite. Assim, a preciosa biblioteca de Antônio Dutra era a nossa salvação. Graças a ele, pude ler muito cedo Eça de Queiroz, Castilho, Antero de Quental, Guerra Junqueira, Machado de Assis, Humberto de Campos, Vieira e tantos outros mestres da língua, que me habituaram aos esforços para melhorar a expressão e corrigir o estilo.

Foi por intermédio de Antônio Dutra que aprendi, quase em criança uma regra de ouro para escrever o nosso idioma. Contou-me ele um instrutivo episódio ocorrido com Rui Barbosa no Congresso Nacional. Interpelado certa vez a respeito de como aprendera a escrever tão bem, Rui respondeu: " Lendo Vieira!". O interlocutor voltou a perguntar:" -Só isso, Excelência?". Rui disse: "- Não, relendo Vieira!". Mas o interlocutor não se conformou. "- Apenas isso? Então é fácil". Rui sorriu e acrescentou: "- Não, não foi apenas isso! Foi tornando a ler Vieira!".

Sobre o assunto, Antônio Dutra costumava repetir outra regra de ouro: "Escrever difícil é muito fácil, mas escrever fácil e simples é muitíssimo difícil".

(1991)

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