Saulo Soares
“O acaso é uma explicação demasiado cômoda, que tem, de resto, o inconveniente de nada explicar.”
Veron
O último poema escrito por Lúcio de Mendonça - piraiense e um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras - retratava a angústia que lhe causava a iminente perda da visão: “A cegueira e a morte, em desumano esporte, disputam-me, não sei, na ânsia de igual terror, qual chegará primeiro, a cegueira ou a morte. A morte e a cegueira, em desumano esporte, disputam-se entre si, e eu, no profundo horror da alternativa, imploro o supremo favor de poder escolher, e de escolher a morte.”
Retirei das páginas de “Lúcio de Mendonça”, de João Pedro Fagerlande, publicada na Série Essencial, da Academia Brasileira de Letras, as seguintes linhas: “Vejamos uma observação de José Veríssimo, talvez o mais importante crítico literário da época, sobre a escrita de Lúcio: “não conheço, no nosso meio, ninguém mais bem-dotado literariamente que o Sr. Lúcio de Mendonça. [...] Conhecendo como poucos o instrumento da arte literária, o Sr. Lúcio de Mendonça, por mal seu ou nosso, deu sobretudo preferência a essa coisa chamada literatura ligeira. É como um virtuose de alto mérito que [...] fosse principalmente ao piano para tocar valsas e polcas. É verdade que ele dá a essas peças menores um extraordinário e às vezes surpreendente relevo, mas é justamente isso que nos faz lastimar que tanta virtuosidade seja aplicada com frequência a coisas somenos.”
Um dos textos que corrobora o que afirmou o crítico literário é o que transcrevo a seguir, A Alma do Sabiá. Para quem leu o conto O Hóspede - e tantos outros contos, e poemas, e crônicas - e se maravilhou com a sagacidade e maestria do autor, o pequeno texto A Alma do Sabiá, pode parecer infantil, singelo. E é exatamente por este motivo que merece ser lido. Eis, então, A Alma do Sabiá:
“A princípio, como se diz na Bíblia e nos contos infantis, o sabiá era mudo. Mudo é um modo de dizer: à tarde, ao voltar para o ninho, já sabia dar aqueles pios tristes e longos que ainda tem; mas era só.
E era motivo de perpétua galhofa para os outros passarinhos ver aquele indivíduo tão corpulento e tão peco de garganta que até o beija-flor, com seu cantozinho fino e estridente, e o pardal, com sua frase monótona, faziam melhor figura do que ele.
Mas um dia, uma tarde, o sabiá (porque nesse tempo havia só um sabiá, como um só pardal e um só beija-flor) estava numa laranjeira, à beira da estrada, junto à porteira da casa; e vinha passando um cavaleiro, com o rosto voltado para uma janela donde uma linda moça, chorosa, dizia-lhe adeuses repetidos.
Eram motivos que se separavam, trocando os derradeiros olhares com tão íntima ternura como se quisessem neles trocar as almas.
Então o sabiá, cruzando a estrada, atravessou aqueles olhares amorosos. Sentiu-se trespassado por uma corrente elétrica. Pousou numa laranjeira defronte, e ao desprender o pio monótono de todas as tardes, entoou, maravilhado, um canto suavíssimo, repassado de infinita melancolia, como se fosse a saudade dos amantes que ali estivesse soluçando.
Assim foi que o sabiá começou a cantar.”
A frase de Veron, em epígrafe, foi escolhida por Lúcio para preceder o primeiro capítulo do seu romance O Marido da Adúltera. Quem primeiro chegou, se a morte ou a cegueira, não saberia dizer. Mas, tenho a firme convicção de que ele - cego ou não - desprezando o acaso como resposta e explicação definitiva, enxergou a “alma do sabiá”.