terça-feira, 11 de julho de 2023

LITERATURA BONJESUISTA EM SÃO PAULO



Delton de Mattos, um dos gênios de nossa literatura 


Em 1948, foi possível reunir em São Paulo um grupo de artistas intelectuais, sob a inspiração da cultura francesa, do qual fizeram parte Ritta Mariacic, Nicanor Miranda, Wilma Viggiano, Marcílio Galvão, Almeida Macedo, Jean Albert-Sorl, Francisco Leger, Sérgio Cardoso (sim, o jovem e famoso ator, que também escrevia crítica de teatro), Fernando Soares, respeitado crítico literário, Clóvis Natalini, em suma, nomes consagrados dos principais suplementos literários em voga. Não faltou também Guilherme Almeida, que além de ter sucedido Olavo Bilac no título de "Príncipe dos poetas brasileiros", falava fluentemente francês, e cuja casa no bairro Sumaré eu tinha passado a frequentar. Cito ainda Maria Eugênia Celso, filha do Conde Afonso Celso e nascida na França, os festejados poetas Gumercindo Fleury e Menotti del Picchia, o culto e refinado Hector Klat, Cônsul do Líbano, com um belo volume de poesias publicado em Paris, Maria Tereza Galvão Bueno e Wanda Mycieslka. Como ilustradores, participavam o pintor Geraldo de Barros, recém-chegado de uma vitoriosa permanência de estudos em Paris, e Ítalo Cencini, notável caricaturista da Folha de S. Paulo, que dominava as rodas boêmias da garoa paulistana, com o seu porte atlético e temperamento italiano. O certo é que em torno da Aliança Francesa, formou-se um círculo artístico simpático e idealista, que acabou criando a revista "Alliance", órgão bilíngue sob o patrocínio da indústria e comércio de São Paulo, ligados de alguma maneira à França e cuja direção, por mais incrível que possa aparecer, foi confiada à minha modesta pessoa.

Prolonguei-me nessa explicação, para dar uma ideia do que deveria ter significado para Bom Jesus a ousadia de ter incluído no no. 5 da Revista "Alliance" prosa e verso de literatos bonjesuistas, o que de alguma maneira desconcertou os patrocinadores, tanto assim que o próprio Cônsul da França me pediu explicações a respeito. Tentei dizer-lhe que esses poetas e prosadores, aos quais abríamos espaço, eram de fato meio desconhecidos em São Paulo, mas não, em parte, pelo Estado do Rio de Janeiro.

Parece que fui convincente, graças também à beleza e correção da linguagem dos trabalhos desses autores, que, em resumo, foram os seguintes:

- à pág. 11, "Três poemas de Elcio Xavier" ("Aparecimento de Ege", "Pequeno Poema da Rosa" e "Deixei-me pelas sombras da tarde". Elcio, como todos se lembram, era discípulo do velho professor Orlando, da antiga rua dos Mineiros, e que era um sério e profundo estudioso de português, matemática e filosofia, a quem Bom Jesus muito deve no campo da cultura, e do qual inexplicavelmente hoje ninguém se lembra. Elcio Xavier foi tentar a vida no Rio, e tornou-se com facilidade, amigo dos romancistas mais famosos da época, como Adonias Filho e Lúcio Cardoso, tendo trazido este último a Bom Jesus, numa Festa de Agosto, quando eu o conheci. A poesia de Elcio Xavier é muitíssimo original, fluídica como cantata em fuga, cheia de neologismos preciosos e agradáveis, em suma, uma nova e promissora linguagem, que surgia na selva decadente e conflagada da moderna lírica brasileira. Seu belo livro "Véu da Manhã" é uma preciosidade da bibliografia dos autores de Bom Jesus. Aliás, nunca pude entender que um talento poético tão precioso acabou mergulhado em inexplicável e intrigante silêncio.

- à p. seguinte de "Alliance", comparecia o mestre Octacilio de Aquino, com um artigo sobre o grande criminalista Evaristo de Moraes, pai. E como se tratava de uma revista franco-brasileira, o competente e meticuloso Octacilio não fez por menos, e começou citando no original a conhecida frase com que o temível advogado francês Charles Lachaud costumava iniciar as suas defesas " Je ne m'appelle pas Lachaud, je m'appelle la Défense!" ( Não me chamo Lachaud, eu me chamo a Defesa!).

- à p. 15, vinha o artigo de Napoleão Teixeira. Logo que cheguei em São Paulo, em 1947, estreitei laços com esse genial escritor filho de Bom Jesus, que era eminente professor universitário de Curitiba. Tendo estado naquela cidade por duas semanas, para fazer operar as vistas do seu filho João Régis, fui visitá-lo, em companhia da jovem e encantadora romancista Rosália Simonian, de quem ele também tornou-se amigo e incondicional admirador. Mais tarde, Napoleão relembrou, em longo artigo, esse estimulante encontro, com palavras elogiosas dirigidas a mim e à romancista. Logo no título de sua contribuição para a revista, perguntava: "Agonizante a poesia?". E respondia que não, que a poesia continuava viva, mas não concordava com as extravagâncias do modernismo, o que provocou uma carta de protesto do Élcio Xavier. Divertia-me com a polêmica dos dois bonjesuenses em terra alheia, achando melhor que fossem resolver a divergência em nossa própria Bom Jesus, apesar de seus ilustres nomes já terem assumido âmbito nacional. Achei arriscado deixar os patrocinadores pagar esse "luxo". Além disso, não me pareceu conveniente que a revista se imiscuisse na polêmica, bastante acirrada, entre modernistas e conservadores, embora trouxesse na sua própria capa a cabeça estilizada de um galo (um dos símbolos da França), obra de um famoso pintor francês, arauto do cubismo.

- à p. 17, a concisa e espirituosa participação de Antônio Dutra, muito significativa, pelo fato de, como sabemos, ele ter escrito pouco, a despeito de sua imensa erudição, e do tanto que estimulou o nosso pensamento e as nossas letras, por outras vias.

- à p. 34, os sonetos "Sombras" e " Tipografia do soneto", respectivamente de Antônio Miguel e Padre Mello.

- à p. 35, meu próprio artigo, resultado de uma pesquisa sob o título " A rota boêmia do Rio de Janeiro e o poeta Raimundo Monteiro".

- à p. 38, Romeu Couto fez uma interessante comparação entre os sonetos, sob o tema bíblico de Ruth, de autoria de Olavo Bilac, e de Octacilio de Aquino, concluindo sem dificuldades que a versão de nosso conterrâneo é bastante melhor.

- à p. 44, e como fecho de ouro, estremeada com textos franceses, vinha a colaboração do saudoso Jacy Pacheco, com o seu curto, delicado e precioso poema "A Ambição do Pingo D'água", tantas vezes declamado na Bom Jesus no meu tempo da Dilah Ferolla e também pela pequenina e encantadora Do Carmo. O poema diz que o autor era um pingo d'água, esquecido no côncavo de uma folha, que foi balançada pelos ventos da vida, perdendo-se cruelmente nas águas revoltas de um riacho. Para quem é bonjesuense e conheceu a comovente cantora e declamadora Dilah Ferolla, por certo ficará especialmente comovido quando hoje ler esses versos.

Em último lugar, um esclarecimento necessário. Deixaram de figurar no no. 5 da revista "Alliance", dois bons poetas de Bom Jesus: Ayrthon Borges Seródio, que na época estava em Niterói às voltas com seu curso de medicina, e o clássico e erudito Athos Fernandes, que tinha prometido enviar-me "uma coisa toda especial", mas infelizmente por esquecimento não o fez.

(1991)



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