sábado, 17 de outubro de 2015

ENTRELINHAS





 Norberto Seródio Boechat

                 Inclemente, o  sol do meio dia fustigava e fazia pender as folhas dos eucaliptos. Pássaros se protegiam nas ramagens das mangueiras. Lagartos, nas fendas das pedras, agitavam, inquietos, as cabeças. Eu estava numa das janelas da fazenda do Bonito. No terreirão, a professora fechou a porta da escola após manhã de trabalho. Crianças espalharam-se em algazarra. Separados do grupo, dois meninos com embornais de cadernos e cartilhas não participavam dos folguedos e procuraram logo o caminho para suas casas. À frente, subida íngreme de terra batida, desenhada pela erosão e encrespada de pedras. Cumpriam todos seus destinos.
                Esta visão do passado, ao marcar o momento, deixou a imagem dos dois. Retornavam aos lares lá no alto, entre morros, para a vida rotineira da roça. No restante da tarde ainda ajudariam os pais na faina diária.  No dia seguinte, novamente desceriam e fariam fila para novas lições.
        Os ensinamentos abririam novas oportunidades? Teriam eles a percepção de trilhas a desancar? Entenderiam o trajeto pelas serras como uma possibilidade de investimento em futuro melhor? Ou permaneceriam,tal qual os pais, há gerações plantando e roçando? Não sei. Não acompanhei suas vidas. No entanto, a cena naquele definidor de tempo disparou  o mundo das interrogações, da inquietante análise dos destinos.
                Se por lá ficaram, na serra e nas roças, com foices e enxadas, não seriam tão importantes quanto aos que, tendo buscado novos horizontes,passaram a advogar e a edificar?  Não representariam díspares, mas inseridos destinos no todo?  Não se lhes facultariam iguais reverências pela vida? Alguém tem que plantar. Alguém tem que advogar ou erguer construções.  E sabemos que não há diferença entre os mecanismos de disparos celulares e contrações de músculos que comandam as ações, sejam elas nos que estão no alto da Pedra Branca ou nos que comandam tribunais.
                No mesmo raciocínio, imaginem a magnitude das mulheres que passaram boa parte do século passado, no pós guerra, a cozinhar para manter seus maridos nas lavouras, produzindo o reerguimento do Brasil. Avaliem na mesma época as normalistas– muitas vezes a cavalo ao caminho das escolas − alicerçando as mentes que dirigiriam a grande nação.
                Creio que a importância é a mesma. É impossível, em essência, no transcendental avanço da humanidade, discutir importâncias. O que me intriga é o acaso das estradas de cada qual. Por que escolhidos alguns para este e outros para aquele caminhar?Que forças ou poderes determinaram as mãos que movimentariam enxadas e foices ou as que ditariam sentenças ou as que comprimiriam o giz branco sobre o quadro negro? Não há dúvida de que são extremos. Se algo pode ser inserido, entre pontos de paralelas, são os destinos humanos. Concomitantes voos como os das galáxias pareadas.Somente Deus em Suas entrelinhas para explicar a complexidade dos teatros humanos.
                Os que permaneceram na roça, é provável,não ouviriam o Requien de Mozart. Mas, também, os doutores não veriam o sol inundar a neblina da madrugada e nem escutariam os estalos dos gravetos a aquecer a água para o primeiro café. São realidades diferentes, são grandezas distintas, mas continuo ponderando, intrigando-me com a distribuição de Deus, com Sua decisão individual sobre os destinos. Resta-me aceitar, pois é evidente a lógica, a organização da Divindade. Vejam como somos pequenos: um móvel com a velocidade da luz demoraria cerca de 220 mil anos- luz para atravessar Andrômeda, a galáxia mais próxima da Via Lactea, em seu maior diâmetro. Fácil, portanto, gerir destinos entre montanhas ou entre campus de universidades aqui em nossa terrinha.
                 Saint Exupery esqueceu-se de levar seu pequeno príncipe aos planetas das escolinhas do interior e aos caboclos descansando sob as sombras dos mexeriqueiros. 
                  Na verdade, somos, por óbvio, seres em extremos na vida e profundamente interligados no universo. Construímos e nos propomos a julgamentos. Num momento,supremos, noutro, ínfimos, diminutos. Num momento marcamos a cristalinidade absoluta, noutro, o absurdo do horror. Assim, fazemos a história, e nela não conheceremos os limites determinantes de que uns são melhores do que outros.
               

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