Norberto Seródio Boechat |
O prazer de tio Nelinho era caçar
inhambus. Para tal, usava apitos esculpidos por ele mesmo em madeira especial.
Lembravam miniaturas de canhões de século XVIII: fenda estreita numa das
extremidades e na outra, perfeito orifício. Encimando a peça, pequena abertura
cujo diâmetro determinava a pureza do pio.
Certo dia, me convidou a
acompanhá-lo. Iria testar um novo apito. Naturalmente, às escondidas, pois meus
pais não admitiriam uma criança embrenhar-se pela floresta atrás de um tio
“desligado”. Assim conhecido porque não se preocupava com coisa nenhuma,
absolutamente nada. Na verdade, um personagem macondiano. Vivia. E a vida para ele consistia em passar
cada dia com o que este lhe oferecia. Tudo era satisfação. Nada o perturbava. Na
face, um eterno sorriso de bonomia. Creio
mesmo que era desprovido de qualquer ambição, pois a caça preferida, arisca e
pequena, não era suculenta. Depois de frita, encolhia-se em ridículo esqueleto.
Saímos. Manhã de sábado. Meus
pais foram a Bom Jesus.
Deveríamos buscar as proximidades
de uma nascente onde houvesse bebedouro natural. O tio na mata parecia um
animal. Seus passos não faziam barulho, ao contrário dos meus, estalando galhos
secos. Andamos por cerca de uma hora. Encontramos, finalmente, o local ideal. A
água jorrava por entre duas pedras cobertas por musgos e se acumulava numa
pequena represa, contida por um galho caído. Procuramos macega próxima e nos
escondemos. Sentamo-nos encostados a pequeno barranco. Apoiou a espingarda
sobre uma das pernas e com o apito iniciou seu “chamado”. Aguardamos.
O pequeno lago era bastante frequentado:
rolinhas, juritis, melros e sanhaços. Nenhum deles o interessava. Tal qual
Fernão Dias, sua esmeralda era o inhambu. Meio dia, ele apitando. Focos de
pequeninos sóis atravessavam a folhagem e se refletiam na superfície da água.
De repente,não muito longe, uma resposta. Pausadamente o tio repetia, ora mais,
ora menos intenso. A ave retrucava. Preparou a espingarda. Seu instinto
mostrou-se com o cuidado ao levá-la à posição de tiro: silenciosa e lenta
coreografia. Os músculos da boca contraídos, soprando intermitentes. O silêncio
quebrado somente pelos “chamados’”. A ave chegou à clareira. Pescoço
instintivamente alongado, girava a cabeça igual a um periscópio. Com passos
cuidadosos aproximou-se do pequeno lago. Descontraída, ciscou e catou algumas
sementes. Sentiu-se segura na sua mata, na sua fonte, sob as queridas e
conhecidas árvores. Esticou uma das asas, espreguiçando-se.
O dedo já estava no gatilho. Mirava firme .Abrandou
a respiração. Fisionomia se crispou, músculos se tensionaram. A expressão mudou
tal qual alguém que, com pleno comando, vai matar, vai destruir. O sorriso
transformou-se em comissuras rígidas, dentes trincados. A face de bonomia
transmutou-se. O ser se reorganizou. A hora do matador.
De soslaio, quase não o reconheci e achei que
estava na floresta com um estranho. Até medo senti, tal a metamorfose diante da
possibilidade de matar, de confirmar, através da pressão de um dedo o outro
lado, o cruel. Às vezes, me lembro daquela imagem do tio, ao acompanhar a atual
ferocidade do homem.Até pensei, com pena do animal, em fazer um ruído para
enxotá-lo,mas, ao mesmo tempo, igual ao caçador, estranhamente curioso para o
desenrolar do prenunciado.
Mantive-me quieto. A ave aproximou-se
da margem. Como Narciso, contemplou, ingênua, a imagem na lâmina líquida. A
última. O Universo, em cumplicidade, decidiu parar todas as forças da natureza
e aguardou, estacou. O destino se faria. O ambiente impregnou-se de fatalidade.
O tiro retiniu em meu ouvido. No pequeno
lago, penas subiram e se espalharam acima do corpo estrebuchando. Por momentos,
fiquei surdo. Naquele instante invadiu-me a noção do impotente destino, do
fatalismo absoluto.Com tantos inhambus na floresta, por que aquele respondeu ao
pio de Tio Nelinho?O atirador exultou. O sorriso voltou grande.Gladiador
sobre sangue recebendo os uivos da multidão. Acomodou a espingarda no ombro,
colocou a ave no embornal e retornamos.
Mais tarde, no decorrer da vida,
em muitas situações espantei-me ao lembrar o ruído do tiro: uma bala arrebentando a cabeça de um menino no
conjunto do alemão. O crânio do Presidente Kennedy, estilhaçado tal qual os
tecidos do inhambu. Kurt Cobain ouvindo a última nota antes da desintegração.
Pedro Nava desenhando em respingos vermelhos a tarde de uma praça na Glória ou Getúlio,
comedido, escondendo dentro do peito os fragmentos que o eternizariam. Balas.
Momentos. Decisivos. Trágicos.
Extremos. Dor.
Somente tio Nelinho, o “desligado”,
sorriu após o estrondo.
Aquele seu instante mostrou a
dualidade do homem, a implacável e atávica dualidade. Escondida e disfarçada
pelo teatro diário, mas pronta para, súbito, arrebentar o destino. Isso me faz
pensar que não poderemos prever nosso ato seguinte, a magnitude da resposta a
um desafio. Qual momentâneo demônio reside em nós? Por certo, o homem é uma
interrogação. É uma possibilidade extrema e inimaginável. De que maneira saber
qual será o próximo inhambu?
Norberto Seródio Boechat é bonjesuense/pirapetinguense
Norberto Seródio Boechat é bonjesuense/pirapetinguense
Belíssima reflexão, Norberto! Li e estarei sempre relendo.
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