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Isabel Cristina Menezes Degli Esposti |
A vida, dizia Cora Coralina, é como um ônibus em movimento. E eu entendi bem isso hoje, ao me deparar com o ônibus Brasil das três horas. Ele chegava, ou melhor, tentava chegar a Varre-Sai, mas estava atrasado, faltavam dez minutos para as quatro. Cinquenta minutos além do costume. Não era sempre assim. Antes, ele marcava presença pontual no bar do Juca, feito relógio de parede em casa de avó. Era ali que tio Zé Roque e tia Mena, vindo de Nova Friburgo, desembarcavam, sempre às três, religiosamente, desde os tempos em que ainda moravam em Bom Jesus do Itabapoana.
Ah, aquele tempo… eles vinham com os filhos, os primos, e só o tio trabalhava fora, então ele subia depois, aos finais de semana, para buscá-los e descer na segunda-feira. Já mais tarde, só vinham os dois, já carregando as malas e os anos. E o ônibus seguia seu rumo, após deixá-los no ponto. Daí até a casa dos meus pais, iam a pé, sem cerimônia, ou de carona. Uma vez até subiram numa charrete! Alguém gritou do outro lado da rua: – Isabel, seus tios passaram ali numa charrete! Eu levei um susto: – Como assim numa charrete? Eles moram em Friburgo! – Pois é. Pegaram carona, estava parada ali perto do bar...
Naqueles dias, a comunicação vinha por carta. Tia Mena nos avisava: “chegamos no dia tal”. E lá ia eu, no meu Fiat Uno, às quinze em ponto, em frente à venda do Batista, esperando. Mas naquele dia o ônibus não chegou. Já passava das 15:30, e eu desci impaciente rumo a Natividade. E lá estava ele! Parado, na curva de Santa Maria, barrado por uma pedra enorme. O ônibus Brasil das três horas, vencido por um poema de Drummond: “No meio do caminho tinha uma pedra. Tinha uma pedra no meio do caminho.”
Entrei no ônibus, lotado, abafado, e lá estavam eles, meus tios queridos.
Meu tio suspirou: – Deus que te abençoa, minha filha! Abraços, beijos, alívio. Descemos. O destino nos aguardava, ou melhor, meus pais. E naquele dia, levei os passageiros que me pertenciam para o reencontro com suas raízes.
Depois disso, o ônibus das três horas nunca mais pareceu tão atrasado. Ficou marcado. Gravado no tempo como um relógio de lembranças. Quando editávamos A Boa Semente, o jornalzinho da Paróquia Nossa Senhora das Graças, era no ônibus das três que os impressos chegavam. Ia eu e meu pequeno menino loiro, esperar em frente a banca de revistas, no largo Santa Philomena. O cobrador já me conhecia, entregava os pacotes com cuidado e afeto. E o menino, apontando o ônibus com os olhinhos brilhando, exclamava: – O jornal, mamãe!
Fez-se uma ligação eterna, entre o ônibus das três e as palavras impressas da fé.
Hoje, talvez o motor canse mais, os horários falhem, os passageiros mudem. Mas o ônibus Brasil das três horas carrega mais do que gente. Carrega histórias. Carrega saudade. E, como escreveu Affonso Romano de Sant’Anna: “No ônibus, a cidade se revela em movimento, como um poema visual de encontros e desencontros, onde cada passageiro carrega sua própria história, ecoando a crônica da vida”
E essa crônica, a minha, começou ali, no bar do Juca, às três da tarde.
Isabel Cristina Menezes Degli Esposti é professora, escritora e historiadora
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