Adentrar no Sítio Sacramento, localizado na Barra do Pirapetinga, é como voltar ao tempo e penetrar no ambiente do século XIX.
Atravessando a pontezinha de madeira que dá para o sítio, somos recebidos por uma impávida tulha construída pelos escravos, no século XIX, e ainda remanescente. Para sua construção foram utilizadas espécies de madeira de lei típicas da região como braúna, peroba, cedro e jacarandá, que ali não se encontram mais. As madeiras eram acopladas umas às outras na base do encaixe, sem prego, e cortadas com serrote.
No interior da tulha, há uma parte feita de "estuque", ou seja, construída com barro, bambu e cipó, com o o bjetivo de refrescar o ambiente. Os bambus eram cortados na "lua certa". Assim, quando se esquentava muito, as pessoas iam para o estuque da tulha.
Em várias tábuas de madeiras, há rabiscos sinalizando números. Na área de estuque, os rabiscos provavelmente indicariam o número de escravos que ali estavam. Na área reservada ao estoque de mercadoria, os sinais possivelmente apontariam a quantidade destas mercadorias, assim como o "número de dias e horas trabalhados". Entre uma área e outra, há uma porta comprida com uma grande chave.
Na parte superior desta porta, há uma abertura, por onde costumavam retirar as mercadorias, quando o cômodo ficava repleto de mercadorias, como milho e café.
Dentro da tulha, objetos raros integram o acervo, como um panelão que era utilizado para fazer canjiquinha com sobras de porco para alimentar os escravos.
No acervo, constam ainda antigos debulhadores de milho e um moinho de fubá.
A tulha foi construída sobre "cauim", um tipo de pedra branca, que "ficava dezoito dias na água e depois era misturada com óleo de baleia".Na parte inferior da tulha ficavam os tropeiros e cavaleiros. Era onde também ficavam depositados os balaios, as cangalhas e as redes para dormir. Os tropeiros dormiam ali utilizando suas capas de dormir conhecidas como "chimili", que eram os tapetes utilizados no arreio.
As telhas da tulha, por sua vez, foram feitas "nas coxas dos escravos".
Parte da parede de estuque desabou com as tempestades do ano passado. Lurdinha teme que este prédio histórico venha a desabar, porque não possui recursos para preservá-lo e tem esperança de que o Poder Público possa ter interesse em apoiar na preservação deste patrimônio histórico.
Ao lado da tulha consta um engenho ainda intacto, embora ainda não funcione mais, devido à falta d'água. A construção mantém a estrutura de outrora, com poucas alterações causadas pela modernidade.
Cerca de dezoito famílias moravam na região conhecida como a Fazenda do Quinca Reis.
Em 1856 teria ocorrido o início da construção da barragem para aumentar o volume d'água, elevando assim a pilagem de café e milho.
Próximo dali, há uma área em que se encontram restos antigos de cerâmica, cinzas e de vidros, sem ser possível precisar a data e o o modo como os objetos foram parar ali. Supõe-se que no local teria existido uma "fábrica de cerâmica, tijolo e vidro". Funcionários do Museu Nacional do Rio de Janeiro, ao visitarem uma Usina Hidrelétrica que estava sendo construída próximo ao local, estiveram no sítio e teriam constatado que ali tratar-se-ia de um "Sítio Arqueológico".
Se esta tese for confirmada, a fábrica de cerâmica deve ter existido a partir de 1911, e teria vendido "cerâmica, panela, copos, tijolos e telhas para o desenvolvimento de Bom Jesus".
Seja como for, trata-se de um conjunto de edificações que remete a um verdadeiro Museu a céu aberto.
Um carro de boi, com data provável de 1913, com cerca de 6 a 8 juntas de boi integra o acervo do Sítio Histórico de Sacramento. Teria sido o primeiro carro de boi utilizado para entregar mercadorias nas casas, assim como para a cidade de Bom Jesus.
CORREDOR CULTURAL, CAVIL e QUINCA REIS
Quem nos guia por estas preciosidades é Lourdes Gomes de Moraes, a Lurdinha, casada com Messias Borges de Moraes. Lurdinha é nascida em Alegre (ES) e mudou-se para Bom Jesus do Itabapoana no ano de 1980, após o casamento. Foi professora para alunos do 1o. grau, ensinou artesanato e quando trabalhou na Prefeitura de Bom Jesus do Itabapoana idealizou inúmeros projetos. Entre eles, menciona o do aproveitamento do barro da Usina Santa Maria, "considerado um dos melhores do Brasil para a confecção de cerâmica".
Outro projeto idealizado por ela era o de realizar um Corredor Cultural. Assim, pretendia promover festejos recordando a história do "milagre do Padre Preto", originada no distrito de Calheiros, em que o padre da época fora colocado em um barco e lançado ao rio, para que caísse na cachoeira. Conta a história que, milagrosamente, o barco retornara à margem, sem nenhum dano ao pároco. A ideia de Lurdinha era a de construir barcos que pudessem permitir que as pessoas realizassem uma parte do trajeto que o "Padre Preto" percorreu. Ao mesmo tempo, concebeu a exploração da culinária através de comida típica com base no fruta-pão, que é específico da região.
Outra ideia relativa ao Corredor Cultural consistiria na promoção da história da Luz do Monte Azul, do distrito de Rosal, onde, segundo relatos, uma luz misteriosa apareceria, há anos, para várias pessoas.
Disse Lurdinha que suas ideias acabaram não tendo o apoio, sendo dispensada na época pela adminstração municipal.
Segundo ela, a famosa manteiga da Cavil nasceu na Barra de Pirapetinga, chegando a ser exportada para a França e Alemanha. Teira sido "Malica a criadora da manteiga. Antonio Borges lançou a manteiga no mercado e os filhos deram continuidade".
Salienta ela, ainda, que Quinca Reis foi o homem visionário que colaborou decisivamente no desenvolvimento de Bom Jesus. Diz ela: "foi Quinca Reis quem ajudou a fundar a CAVIL em 1954. Com os filhos de Antonio Borges adentrando para a Cooperativa, levaram para lá a fórmula da manteiga, que ganhou o Prêmio Nacional de Qualidade em 1990, quando Fernando Nogueira era o seu presidente".
Segundo Lurdinha, Quinca Reis possuía contato com pessoas de todo o Brasil, e ficava sempre atualizado com as novidades tecnológicas do seu tempo. "Ele chegou a arrendar uma área em Santo Eduardo (RJ) para estocar mercadorias para serem embarcadas em trens".
Quinca Reis "nasceu em São José do Calçado, oriundo de família de Minas Gerais. Casou-se inicialmente com "dona Mulata" e depois do seu falecimento, "casou-se com a irmã desta".
Segundo Lurdinha, a "primeira família foi constituída de Teté Reis, José Reis, Maria dos Reis. A segunda família constituiu-se com a família Borges"
O sítio do Sacramento pertence à 4a. geração da família de Quinca Reis, com os filhos José Reis e Messias, que, por sua vez, tem como filhos Daniel (27), Hellen( 32), Gean (23) e Daniel (27).
Conta Lurdinha que "Quinca Reis possuía cerca de 16 anos de idade, em 1911, quando iniciou atividades no comércio. Aprendeu a ler sozinho e com 19 anos já era comerciante. Emprestava dinheiro e com 22 anos se tornou a pessoa mais rica da região. Estocava carne de porco, de boi e milho. As pessoas pagavam as dívidas com arrroz e feijão, pois não havia dinheiro na época".
"Na casa de Quinca Reis foram encontrados livros de Machado de Assis e "Os Lusíadas", de Camões. Além disso, foi o primeiro a utilizar o telefone para o comércio. A 1a. Usina Hidrelétrica de Bom Jesus também foi construída por Quinca Reis e Antonio Borges. O objetivo era iluminar a Barra. A ideia foi de Quinca Reis, que comprou o equipamento", diz Lurdinha.
" A Casa da Manteiga pertencia também à fazenda. Após sua venda, pedaços de madeira que constituiam as janelas e portas foram levados para o Sítio Sacramento para integrar o acervo".
Lurdinha registra que uma bica era utilizada para pilar café. A água, deslocada cerca de 3 km para a então Fazenda Sacramento, era utilizada para mover uma pedra que pilava o café. Ressalta ainda que a construção era também feita com cauim. "Monjolo" seria o nome dado à pedra que, movida pelas águas, pilava o café. Posteriormente, tropas e carros de boi levavam as mercadorias para Santo Eduardo, onde eram embarcadas em trem para Rio de Janeiro e Minas Gerais.
Segundo Lurdinha, seu objetivo e de seu marido é que "todos tenham acesso a esta história. A História de Bom Jesus está aqui, com construções da época. Temos todas as condições de criar um Museu Histórico Municipal e desenvolver o turismo na região. Se o Poder Público tiver olhos voltados para a preservação da cultura e do turismo, esta área há de ter o apoio necessário para não perecer com o tempo", finaliza Lurdinha.
(PUBLICADA NA EDIÇÃO DE 14 DE DEZEMBRO DE 2011)
Gino,o trabalho que vocês fazem é de valor inestimável!!!
ResponderExcluirCaro Bolívar,
ExcluirAgradecemos suas palavras. É um incentivo importante, principalmente porque vem de um conceituado professor e historiador gaúcho como você, que sempre nos dá notável exemplo de amor pelos livros, por onde passa.
Parabéns pela matéria!!! Contribui muito para o resgate da história de Bom Jesus.
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