segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

O PALETÓ

 


Reginaldo Teixeira Chalhoub 

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    Estava eu na cadeira do dentista, quando passou o carro da funerária anunciando o falecimento de um cidadão, cujo nome não me lembro, mais conhecido como “Paletó”, dizia o anunciante.
    Curioso com a alcunha do falecido, indaguei do dentista se ele o conheceu e o porquê do inusitado apelido. E ele, rindo, contou-me a seguinte história:
    Era junho e naquela noite fazia frio. Quatro amigos estavam sentados no botequim, junto a uma mesa que já ostentava algumas garrafas de cerveja. Falavam de futebol e outras coisas. Por volta das 22 horas, um dos membros do grupo, comentou algo sobre certa pessoa conhecida, que havia falecido. E começaram a emitir suas opiniões sobre a criatura morta, seus méritos, seus defeitos, casos ocorridos, aquele papo que sempre rola nessas ocasiões.
    Em função desse triste evento, a conversa descambou para o assunto alma do outro mundo, assombração, espíritos e cemitério. Quem acredita, quem não acredita, quem tem medo, quem não tem, quem é macho, essas coisas, Conversa de bêbados.
    Já passava das onze horas da noite e todos, já vem alcoolizados, continuavam trocando figurinhas e falando abobrinhas, até que um deles teve a brilhante ideia de fazer um comentário desafiador: quem aqui tem coragem de entrar no cemitério à meia noite? Aquele que tiver, vai ganhar uma caixa de cerveja. Todo mundo topa? Toparam.
    O cemitério ficava logo ali mais à frente. Coo se tivessem combinado, na mesma hora todos olharam para a fora, na direção das sepulturas que estavam mais à vista. Reinou silêncio. Ninguém se manifestou. – Só o Waldemar, que vestia um paletó que ele não conseguia abotoar, de tão apertado. – Pois eu vou, disse ele, e depois vou beber sozinho aquela caixa de cerveja, seus otários!
    Todo mundo aceitou a valentia do Waldemar. Mas, se ele entrasse lá, teria de provar. E como provar? Combinaram, então, que o Waldemar, para comprovar a sua façanha, teria que pregar uma tampinha de cerveja bem em baixo, no pé do grande cruzeiro que havia lá dentro. – Aí sim, o dia seguinte todos iriam lá para conferir se o cara entrou ou não.  Tudo certo e combinado, pagaram a conta e cada um foi ara o seu lado.  
    Faltavam cinco minutos para a meia-noite no relógio do Waldemar.  A noite estava fria, com uma neblina baixa e bastante escura. Sentindo um frio danado, ele chegou, olhou para os lados e empurrou o pesado portão de ferro. Portão de cemitério nunca está trancado! – Entrou devagarinho, ressabiado, morrendo de medo. Trazia  dependurado no cinto um pequeno martelo e três chapinhas, tampinhas de garrafa, cada uma já com um prego enfiado no meio. Era só encostar um conjuntinho daquele no poste e pregar. Trazia três porque, sabe-se lá, uma  podia cair no chão e se perder; era de noite, estaria escuro, e ai ? – Inteligência é para quem tem!
    Medrosamente, e ainda meio zonzo pela cervejada de poucas horas antes, nosso herói caminhava cuidadosamente pela ruazinha existente entre as sepulturas, sempre na direção do cruzeiro, que ele divisava através da neblina. Avançava com certa dificuldade, tropeçando nas pedras do chão irregular, amparando-se de um lado e do outro nas velhas catacumbas, imundas e molhadas, ajudado somente pelas luzes vindas da rua, que ainda conseguiam varar aquela escuridão e aquela terrível neblina, que começava a virar água de chuva. – Nunca cinquenta e poucos metros foram tão longos para o Wanderlei.
    Mas ele via o cruzeiro, que se levantava majestoso no meio dos túmulos atos. Esses malditos túmulos eram tão altos que, naquela hora pareciam enormes edifícios  que os ricos tinham a mania de construir para os seus mortos. E era por causa deles que a luz da rua já não chegava no terreno baixo, onde ele estava pisando.  
    Waldemar tremia de frio, inquieto com qualquer ruído e transido de medo, de pavor, já arrependido da valentia demonstrada lá no boteco. – Se uma coruja piasse por ali naqueles momentos, com certeza o Waldemar se borraria todo, irremediavelmente! Mesmo assim, arranjando coragem não se sabe onde e guiado talvez pelo cheiro das velas que os religiosos queimavam ao pé do cruzeiro, ele foi se apoiando aqui e ali, no escuro, até que finalmente, chegou ao cruzeiro, o destino final da sua missão.  
    Encostou-se no madeiro e apalpou o bolso, buscando a primeira tampinha, com o prego atravessado. O martelo estava preso no sinto, onde ele também o buscou. No escuro e encontrado na cruz, ele foi se abaixando e passando a mão na madeira, para se certificar que estava em baixo. Com o corpo encostado no cruzeiro e bem curvado, conseguiu o seu objetivo, ajeitando a chapinha com o prego e batendo levemente a primeira vez, acertando o dedo. A segunda tentativa acertou o prego e tornou a bater, pregou.  
    A neblina já era uma chuvinha fina quando ele, já satisfeito, levantou um pouco o corpo para sair, e levou o primeiro puxão. Parou assustado. –  “Que isso, meu Deus? Credo!”  - Tentou levantar de novo, outro puxão mais forte. – “Pelo amor de Jesus, Nossa Senhora do Céu, me ajuda!” -  Aterrorizado, cabelos em pé, os olhos quase pulando fora  das órbitas, quis endireitar o corpo e de novo um forte puxão.- “ Não gente, pelo amor de Deus! Ai, Jesus! Meu São Jorge, guerreiro! Jesus, Maria, José! Socorrooooo!!!”
    No auge do desespero, do desespero, do pânico e do terror, perdeu-se o martelo, rasgou-se o paletó, que ficou despedaçado para trás; para trás ficaram também a coragem e a valentia de Waldemar, com a disparada louca que o cara empreendeu rumo à saída do cemitério.  
    Como sair era mais longe um pouco, Waldemar cortou caminho por cima de túmulos, pulou sepulturas, ignorou catacumbas, covas e jazigos para chegar ao muro mais próximo, escalá-lo e pular na calçada da rua, para finalmente tomar o caminho de casa, onde chegou esbaforido, trêmulo, mijado, sem voz e com imensa vontade de chorar.  
    Não conseguiu dormir à noite. Rezou todas as orações que havia aprendido no catecismo quando criança. Repetiu e tornou a rezar. De manhã, não contou nada a ninguém, só tomou um gole de café e voltou para a cama, alegando estar com muita dor de cabeça e um pouco enjoado.  
    No dia seguinte, seus companheiros da bebedeira, sequiosos por saber alguma coisa sobre a proeza prometida na véspera pelo Waldemar e também ignorando o sofrimento do amigo durante a noite, foram cedo ao cemitério e o paletó do Waldemar, todo rasgado e com o lado esquerdo pregado no cruzeiro, com uma tampinha de Brahma Chopp.
    O pobre do Waldemar carregou o apelido de Paletó por toda a vida e, com ele foi anunciado o enterrado.  

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