quinta-feira, 25 de dezembro de 2025

O Porteiro do Angu

 

Adalto Boechat Júnior 

Um dia, à tarde, adormeci.

E sonhei com Dona Neném, rezadeira daqui da roça, parteira que ajudou minha mãe para que eu viesse ao mundo.

Ela já havia partido em 1998.

No sonho, Dona Neném me entregou uma chave e disse, com a serenidade de quem sabe:

- Essa é a chave do centro espírita.

- Abra as portas e faça uma panela de angu bem grande.

Respondi, meio aflito:

- Eu não sei cozinhar, Dona Neném.

Ela sorriu e ensinou como quem reza:

- Angu não tem segredo. É só mexer pra não empelotar. Não pare de mexer.

Naquela mesma noite, a enchente veio forte aqui na roça.

Água demais, desabrigo, gente sem chão.

Tive que abrir o centro espírita para que as pessoas dormissem.

Não havia mantimento.

O que consegui foi uma sopa de fubá com frango.

Era pouco.

Mas era o possível.

Então compreendi.

Minha missão não é ser o dono da panela, nem o mestre da receita.

Minha missão é ser o porteiro.

Abrir as portas.

Pedir um cadim aqui, um cadim ali.

Mexer o angu.

E mexer sem parar, porque angu cansa, demora a ferver, e se parar, desanda tudo.

Quando o braço cansar, chamo outro para ajudar.

Porque ninguém sustenta sozinho uma panela grande.

Os verdadeiros trabalhadores, porém, são os que vieram antes de mim:

Lina, Vivalde,

Dona Dulcinéia, Seu Norberto,

Cecília Nicolau, Fernando,

Dona Neném

e tantos outros amigos do centro.

Eu sou apenas aquele que abre as portas.

Sinto que essa missão me foi dada por Dona Neném, e eu tenho que cumpri-la.

Toda honra do que acontece ali é de Jesus e de Maria Santíssima.

Eu sou apenas aquele que ainda está à beira do lago de Genesaré, cego, pedindo esmolas do conhecimento.

 


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