quinta-feira, 14 de agosto de 2025

Mamãe está dormindo

 

Carolina Boechat 

Mamãe está dormindo nasceu da solidão de um apartamento ainda cheio de lembranças. Entre ficção e realidade, era certo que eu escolhesse personagens densos para povoar a tela em branco que me provocava com promessas de grandes aventuras, caso eu não desistisse da empreitada. 

E assim cheguei a uma personagem sem nome, definida apenas pelo grau de parentesco. Eu a chamei " a tia de Sílvia". A inspiração veio de uma tia materna que acolheu e criou meu pai. Já viúva, morava em nossa casa, considerando seus, os filhos da irmã. Silenciosamente, as duas mulheres passaram a vida disputando a legitimidade do amor filial e a posse de um cordão de ouro, mas isso é assunto para uma outra história. 

Nestas ocasiões, eu teria por volta de quatro ou cinco anos e não saberia precisar a frequência das viagens, sei que embarcávamos, eu e minha tia, rumo à fazenda onde morou com o marido. Na casa, ela mantinha trancados dois cômodos que, um dia, compunham o quarto do casal. 

Em meus devaneios, quando a chave girava na fechadura, batedores íam à frente anunciando a chegada da rainha para se apossar de seu reino. E naqueles quartos contíguos, iluminados pelas lamparinas que projetavam sombras enormes nas paredes, ela passava horas apreciando seus baús cheios de recordação. Livros, fotos fúnebres que seriam enviadas para os parentes que não puderam comparecer às exéquias, mechas de cabelos guardadas como eterna recordação. Nos baús não eram guardadas as alegrias. 

Mas eu, criança, olhando as sombras que dançavam nas paredes, ainda não conseguia entender que a vida é assim. Só saberia disso alguns anos mais tarde quando, sob as luzes fortes das noites da cidade, também abro o meu baú de tristezas.

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