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Paulo Cruz |
"Mas se não acredito no futuro, o mesmo não direi da eternidade, que pode fecundar todas as horas do tempo; creio numa presença absoluta, que é também um presente e se pode colher hoje.” (Gustave Thibon)
Meu cansaço continua. Ao ver, no último domingo, as imagens de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque, em cima de um caminhão de som, cantando aquelas velhas ladainhas dos anos 1960 contra a censura e a favor da democracia, senti até certa náusea. Os mesmos que, naqueles tempos, lutavam por uma democracia, no mínimo, sui generis, e que agora apoiam censura, estavam lá, como arautos de si mesmos, como representantes de uma utopia só existente em suas cabeças envenenadas de ideologias há décadas. É até simbólico ver essas pessoas, que desde a volta de seus exílios midiáticos, no início dos anos 1970, e de terem dominado desde então o mainstream artístico nacional sem jamais terem recuado um milímetro, ainda tenham relevância. Não porque sua opinião, de fato, importe, mas porque são parte da elite que rege culturalmente o país.
É tudo muito cansativo, pois parece que estamos numa espécie de Caverna do Dragão sem um Mestre dos Magos para nos dar esperança – os mais velhos entenderão a referência. Ou mesmo num samsara, mencionado por mim em artigo recente nesta Gazeta do Povo, presos num destino perverso que brinca com nossa incapacidade de dar alguns poucos passos consistentes em direção a uma saída para o nosso país.
O bem de uma sociedade é, antes de qualquer coisa, a virtude de seus cidadãos, e enquanto estes não forem educados para a virtude, a riqueza material será fonte de disputas e a desigualdade se perpetuará.
É até irônico, pois enquanto uns estão defendendo anistia para políticos, a população segue esquecida – um dos significados da palavra em sua origem grega, amnistia, é “esquecer”; e outros estão defendendo a democracia quando parte considerável da população nem sabe o que é isso, uma vez que vive à mercê de auxílios estatais, sem ter autonomia para escolher nada, ou sob o domínio de oligarquias políticas e do crime organizado.
Veja, caro leitor: os maiores problemas de nossa pátria não são a doutrinação nas escolas, o identitarismo ou mesmo a legalização do aborto – ainda que sejam, todos, problemas graves. Nossas maiores chagas são extremamente prosaicas, tais como: saneamento básico; doenças que, há muito, deveriam ter sido erradicadas; transporte público; moradia; a fome, que ainda assola milhões; infraestrutura; emprego e educação. E a maioria delas não é de difícil solução. Bastaria um projeto consistente de país e o esforço concentrado de nossos políticos, menos preocupados com a manutenção e perpetuação de seu poder e mais com o país, e teríamos grande parte de nossas mazelas solucionadas (ou, ao menos, encaminhadas).
A corrupção, que é, na verdade, uma das grandes causas de nosso atraso, será combatida adequadamente quando nosso esforço de pressão popular for no sentido não de anistiar políticos, mas de fazê-los pagar exemplarmente por seus crimes, não importa o tamanho de nossa afinidade por suas ideias. Quando combatermos, com unhas e dentes, projetos personalistas de poder e o nefasto patrimonialismo, e não fizermos vista grossa para isso a fim de sermos, de algum modo, beneficiados.
A finalidade de uma sociedade deve ser o bem comum, que é o exato oposto da corrupção. Nesse sentido, Aristóteles inicia a sua Política de modo exemplar:
“Observamos que toda a cidade é uma certa forma de comunidade e que toda a comunidade é constituída em vista de algum bem. É que, em todas as suas ações, todos os homens visam o que pensam ser o bem. E, então, manifesto que, na medida em que todas as comunidades visam algum bem, a comunidade mais elevada de todas e que engloba todas as outras visará o maior de todos os bens. Esta comunidade é chamada ʻcidadeʼ, aquela que toma a forma de uma comunidade de cidadãos.”
Não existe sociedade sem virtudes. O maquiavelismo da modernidade, que enxerga a política somente pela perspectiva utilitarista, já se mostrou falho em muitos níveis, pois o bem de uma sociedade é, antes de qualquer coisa, a virtude de seus cidadãos, e enquanto estes não forem educados para a virtude, a riqueza material será fonte de disputas e a desigualdade se perpetuará, impedindo o progresso. Pois (é o mesmo Aristóteles quem diz) uma boa sociedade é formada por seu fiel da balança, que é a classe média:
“Em todas as cidades, existem três elementos: os muito ricos, os muito pobres, e a classe média. Por conseguinte, posto que concordamos que o moderado e o intermédio é o que há de melhor, torna-se evidente que, em relação à posse dos bens, a riqueza mediana é a melhor de todas porque é a que mais facilmente obedece aos ditames da razão. Pelo contrário, a beleza excessiva, a força extrema, a linhagem inigualável, a riqueza desmedida, ou os respectivos opostos, tais como a pobreza excessiva, a debilidade extrema, e a ausência de honrarias, têm dificuldade em seguir a voz da razão [...]. A cidade quer-se o mais possível composta de elementos semelhantes e iguais. Ora essa condição só se encontra precisamente na classe média. Segue-se, pois, que a cidade governada com base nestes elementos médios (que, em nosso entender, constituem por natureza uma cidade) será necessariamente a mais excelente de todas.”
A solução de nossos problemas está, inicialmente, em uma consistente educação para a verdadeira cidadania e penso que é nisso que devemos nos concentrar
E o mesmo serve aos governantes:
“É, pois, muito vantajoso que os titulares de cargos públicos possuam uma riqueza mediana e suficiente; as cidades em que uns possuem em demasia e outros nada possuem propiciam o estabelecimento de uma democracia extrema, ou de uma oligarquia pura, ou mesmo de uma tirania, nos casos em que, quer uma, quer outra, se excedam. Assim, se é verdade que uma tirania nasce da democracia mais radical ou da oligarquia, também é verdade que tem muito menos possibilidades de se impor entre as classes médias, ou em classes muito afins.”
Ou seja, a virtude está no meio-termo, e sua conquista é, antes de tudo, um hábito da alma, uma excelência moral. Daí que a pergunta que inicia esse artigo pode ser respondida de modo simples, uma vez que é possível a todos, com um pouquinho de reflexão e conhecimento, sabermos o que é o melhor para todos, e também sabermos quais são as fontes de nossos males. Nesse sentido, imagino que a solução de nossos problemas está, inicialmente, em uma consistente educação para a verdadeira cidadania e penso que é nisso que devemos nos concentrar. Diante disso, tudo, absolutamente tudo, é menor.
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Paulo Cruz
Paulo Cruz é professor e palestrante nas áreas de filosofia, educação e questões relacionadas ao racismo no Brasil. Formado em Filosofia e mestre em Ciências da Religião, é professor de Filosofia e Sociologia na rede paulista de ensino público. Em 2017 foi um dos agraciados com a Ordem do Mérito Cultural, honraria concedida pelo Ministério da Cultura, anualmente, por indicação popular, a nomes que se destacaram na produção e divulgação cultural. **Os textos do colunista não expressam, necessariamente, a opinião da Gazeta do Povo.
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