Na edição passada de O Norte Fluminense, sob o título "Cinco Gênios da Cultura Bonjesuense", foi republicado texto de Delton de Mattos, publicado originalmente em nosso jornal em 2004 e intitulado "Uma recomendação de Octacílio de Aquino".
O artigo revelou a carta de Monteiro Lobato em que este, agradecido ao escritor bonjesuense, considerou o artigo sobre seu livro "Urupês", publicado no jornal A Voz do Povo, como "dos que mais dizem e mais profundamente".
O Norte Fluminense homenageia, neste artigo, esse gênio de nossa cultura, reproduzindo, a seguir, o texto elogiado pelo maior escritor infanto-juvenil do país e que foi publicado no livro "Antologia", editado por Delton de Mattos e produzido pelo advogado Sebastião Freire Rodrigues.
Octacílio de Aquino |
CARTA SOBRE MONTEIRO
LOBATO
Amigo e Chefe:
Ponhamos a esta carta,
por lhe falar melhor, um título: A carta das coincidências. Vá contando.
Mal havia eu sido
entregue do mais recente estudo biográfico sobre Monteiro Lobato, o rádio nos
trazia a contristadora notícia de sua morte. Essa coincidência torna mais
interessante e mais oportuno o livro.
Mas não fica aí a
coincidência.
O autor - Alberto Conti
- morreu antes de concluída a obra. Temos, pois, um desdobramento de
impressões. Dias atrás era a morte glorificando a vida, a glória póstuma
automaticamente assegurada ao escritor imenso, o maior do Brasil do nosso
tempo, um dos mais completos do mundo.
Agora é a paz das
sombras que nos fala, dizendo sobre as qualidades mestras de quem soube viver
intensamente, através de um estilo que não cede ao de ninguém e através de um
patriotismo que chegou até ao sacrifício próprio, até aos mais fundos
sofrimentos da alma, no considerar as questões essenciais da terra e do povo
brasileiro.
Monteiro Lobato não
pertencia à família nem a São Paulo nem ao país: pertencia ao patrimônio
universal dos valores humanos. Lobato foi propriamente uma luta na guerra, que
ainda hoje se desenvolve, pela emancipação intelectual e econômica do Brasil,
foi ele uma das mais bem pelejadas batalhas. Marcou um episódio gigantesco em
nossa história.
Todas essas coisas,
amigo e chefe, já eu meditava na imprensa quando ele ainda estava vivo. Essa
dívida da minha admiração amortizava-se, portanto, em muito, quando o
publicista ilustre ainda se consagrava de todo à herculana tarefa de transmudar
os métodos literários, fundo e forma, até então seguidos entre nós, tarefa que,
de algum modo lembrava alguma coisa de Eça de Queiroz.
Mas o que me acode à
memória, antes de tudo, é a noite grandiosa em que Ruy, no Teatro Lírico,
iniciava a sua anunciada e esperadíssima conferência sobre a questão social,
representando o Jeca Tatu, do livro Urupês. Que alvoroços não tive! Eu era Ruy
até à medula. A paixão liberal que empolgava o país era a minha escola. Andava
eu aturdido com as primeiras idéias, ainda à procura de uma expressão e de
contornos exatos.
Ao contrário de
Barthou, que via no Direito uma porta aberta para a política, batia eu às
portas do Direito, animado pelos mais santos impulsos das propagandas de então.
Tais eram os gestos do meu espírito, na ocasião em que o país, conheceu melhor,
sob o prestígio incontestável de Ruy, a criação incomparável do Jeca Tatu. Não
me habituava ao ostracismo que os confabuladores da política oficial votavam ao
maior dos nossos concidadãos.
Parecia-me estranho que
Ruy Barbosa precisasse de pleitear a Presidência da República, ele, advogado
exímio dos escravos, ele, que abalara o trono, Ruy, o expoente da segunda
Conferência de Haia, o lidador incansável que acabava de conseguir, nos meios
nacionais, um reviramento completo da opinião, conduzindo e levando a bom termo
a jornada civilista. Ruy - com a palavra João Mangabeira -, o estadista da
República.
Pouco depois as
livrarias estrelejavam, ostentando a 4ª edição dos Urupês. Corri à Garnier,
donde saí sobraçando, solene, preciosidade. Daí para cá, Monteiro Lobato,
definitivou-se em minha admiração. Ensebei-lhe o livro, de tanto que li e
consultei, respingando-lhe vocábulos e locuções, modismos, torneios de
linguagem, construções refertas de novidade e gosto, e, mais do que tudo, a
maneira de representar os temas quer os de profundeza, quer os de simples
artigos ou contos leves (das Bucólicas, por exemplo).
O mundo continuou a dar
voltas. Ruy não chegou ao Catete, Lobato não chegaria à Academia Brasileira de
Letras: pela derrota, na primeira vez, pela desistência, na segunda, pela
recusa formal na terceira e última. O espírito também cria calos, como as mãos
dos que trabalham no eito...
Tempos depois ninguém
falava em petróleo sem pensar em Lobato (o escritor) e em Lobato (a terra, a
primeira a nos dar um poço). Outra coincidência, que o próprio Lobato
ressaltava - O meu poço, dizia jovialmente referindo-se àquele trato do
território baiano.
E publicou exaustivos
trabalhos sobre o petróleo. Apaixonou-se. Foi além das medidas. Resultado:
processo, condenação, cadeia, desalento, exílio na Argentina, regresso à
pátria. Por fim, ei-lo completamente envolto na questão social. Comunista?
Dizia-se... Talvez não,
suponhamos, desejamos que tenha sido apenas um socialista a seu modo, como
chegou a ser, sem tirar pelos figurinos, um estilista elegante e sóbrio, um
pensador eminente, um contista original e primoroso.
Terminemos a carta,
fixando mais uma coincidência, a maior de todas. Ei-la. Centralizando-o no
exórdio de uma conferência notável, a questão social apresentou a glória de
Monteiro Lobato. A questão social havia também de lhe apresentar a morte. A
conferência esperou a vida. E 29 anos depois, Monteiro Lobato, que lhe havia
sido o exórdio, formava-lhe a peroração. Morreu quando devia morrer? Difícil a
resposta. O certo é que parece ter sido para si mesmo que ele escreveu um dia:
"tristes os que aprendem nos livros, dentro dos gabinetes! Um só livro
existe: a vida; um só gabinete: a natureza". Se perguntarem qual o melhor
livro de Monteiro Lobato, responderei: a sua vida. Vida que refletiu a natureza
de sua terra, da cidade aos sertões, e, sobretudo e sobremodo, até certa
altura, a alma do Brasil.
E é quanto lhe pode
dizer, glorificando o passado, o seu atento admirador, Octacílio.
Maio de 1949
(páginas 120/123)
Maravilha!
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