O açoriano Padre Antônio Francisco de Mello chegou a Bom Jesus do Itabapoana no dia 18 de junho de 1889.
Em 1905, Bom Jesus era distrito de Itaperuna, e os munícipes nutriam inconformismo com a supressão da sua primeira emancipação, ocorrida em 1890.
Na véspera da Festa do Divino, havia, também, um outro momento de tensão entre a tradição religiosa e o avanço político da república recém-instalada.
O sino da matriz batia lento, como se medisse os passos do tempo. Era uma tarde abafada, dessas em que até as andorinhas voam devagar. Padre Antônio Francisco de Mello ajeitava sua batina diante do espelho rachado da sacristia. Estava mais magro, os cabelos rareando nas têmporas, mas os olhos... os olhos ainda tinham o mesmo brilho do dia em que ali chegou, seis anos antes.
Sobre a mesa de madeira, repousava o caderno de capa de couro — agora repleto de nomes, versos, mapas da alma bonjesuense. E por cima dele, dobrado com cuidado, o hino da Alva Pomba, de autoria de Padre Delgado, outro ilustre açoriano, que ele transcrevera durante uma noite de vigília, entre lamparinas e terços.
Um jovem entrou apressado.
— Padre Mello... Coronel Lobão mandou dizer que a procissão não pode sair este ano.
Mello se virou devagar. Os olhos não se alteraram.
— E por que não, Henrique?
— Diz ele que a república é laica, que a vila precisa de ordem e que religião não pode ocupar as ruas.
O padre caminhou até a janela. Lá fora, a praça já se enchia de fiéis com fitas vermelhas e mantos bordados por Francisca de Paula Figueiredo Soares. A pomba prateada tremulava sobre a cabeça das crianças. O povo estava pronto. A fé também.
Ele respirou fundo.
— Escreva no meu caderno, Henrique. Hoje. "O Coronel proibiu a fé de sair às ruas. Mas a fé saiu mesmo assim."
Henrique hesitou.
— Vai desafiar o coronel?
Padre Mello sorriu. Pegou o crucifixo de madeira e o colocou no peito.
— Não. Eu vou acompanhar meu povo. Se o coronel quiser me prender por caminhar com o Divino, que me prenda.
E saiu. Passo por passo, com a pomba à frente, os fiéis atrás, os sinos tocando — não com a força de antes, mas com a teimosia dos que não se rendem. Francisca de Paula Figueiredo Soares chorava. Adelino Camilo Gonçalves e Juvenato Theotônio da Silva tocavam caixa com mãos tremidas.
O coronel não apareceu. E naquela tarde morna, pelas ruas de terra da pequena vila, a última procissão em perigo conduzida por Padre Mello atravessou a história. Não seria registrada nos decretos oficiais, mas estava gravada — na memória de quem viveu, no caderno do padre, no hino da Alva Pomba, e com os novos versos que ele cantou com a voz rouca:
"Voa, pomba, sobre a praça
Leva o Espírito na asa
Pois mesmo se os homens mandarem parar
O céu nunca deixa de passar."
Padre Antônio Francisco de Mello Mello foi não só poeta, compositor, memorialista e cronista, mas símbolo da resistência cultural e espiritual da cidade. Sua influência foi gigante. As crianças desejavam "estudar para ser Padre Mello". A influência póstuma também permaneceu: as crianças que o conheceram viraram líderes, o hino da Alva Pomba é cantado por gerações e o povo conta sua história em voz baixa.
HINO DA ALVA POMBA
Autoria: Padre Delgado, da ilha de São Miguel (Arquipélago dos Açores/Portugal), inserido na Festa do Divino de Bom Jesus do Itabapoana por Padre Antônio Francisco de Mello
Alva Pomba, que meiga apareceste
Ao Messias no Rio Jordão
Estendei vossas asas celestes
Sobre os povos do orbe cristão!
Vinde, oh! Vinde entre nuvens de glória!
Entre os anjos e bênçãos de amor!
Entre cantos de eterna vitória,
Que os querubins nos elevam ao Senhor! (bis)
Quem aos pobres seus braços estende,
Quem lhes veste seus ombros tão nus,
Achará que tudo isso só tende
Para a honra e glória da cruz.
Ofertai as mais belas oferendas
Ofertai-as em nome de Deus;
Colhereis lá um dia mil prendas,
Quando entrardes no reino dos Céus.
Semeando vosso ouro entre os pobres,
A colheita no céu a fareis.
O produto de esforços tão nobres
Só no seio de Deus achareis.
Vinde irmãos, vinde todos contritos
Uma esmola de amor ofertar
É dever consolar os aflitos
E a fome dos pobres matar.
Tragam rosas e ramos de louro,
Quem esmola melhor não tiver;
Assim mesmo oferece um tesouro,
Ganhará um brasão de esmoler.
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