segunda-feira, 7 de julho de 2025

O Silêncio Mandado Calar




Em 1905, período de expansão urbana e reorganização política em Bom Jesus do Itabapoana, o distrito estava subordinado a Itaperuna, contra a vontade dos moradores, que não aceitavam ter perdido sua autonomia em 1890. Coronel Lobão era um homem prático, autoritário e defensor ferrenho da ordem republicana recém-instalada — mas pouco afeito à cultura popular e à religiosidade do povo.

O conflito entre o açoriano Padre Antônio Francisco de Mello e os coronéis e políticos adicionaram tensão dramática ao quadro da vila, revelando o caráter do padre e mostrando como fé, cultura e poder frequentemente disputavam o espaço da palavra e da praça.

O relógio marcava quatro horas da tarde quando Padre Mello adentrou o salão de tábuas largas da Intendência, acompanhado de um silêncio que parecia mais pesado que qualquer palavra. Na poltrona do centro, o Coronel Lobão, homem de bigode grosso, botas lustradas e olhar de comando, tamborilava os dedos na escrivaninha.

— Vossa Reverendíssima foi convocado, não convidado — disse o coronel, sem levantar-se. — Espero que entenda a diferença.

O padre parou diante dele com as mãos atrás das costas, a batina ligeiramente empoeirada da caminhada.

— Entendo perfeitamente. Quando não se quer ouvir, costuma-se chamar para calar.

Lobão se ergueu, agora medindo o padre com olhos de dono da terra.

— Chegou ao meu conhecimento que o senhor insiste em organizar procissões, festas e ladainhas sem solicitar autorização da Intendência. Estamos em tempos republicanos. Fé é para dentro da igreja, não para a rua.

Mello respirou fundo. Escolheu as palavras como quem escolhe sementes.

— A fé do povo não cabe dentro de paredes. Se o senhor tivesse escutado a cantiga da última Festa do Divino, veria que ela não pede permissão: ela brota. E quando brota, toma a praça.

O coronel se aproximou, a voz baixa, mas firme:

— Padre, seu ofício é rezar. Não incendiar corações. Estamos tentando civilizar esta vila. Ordem, progresso. Entende?

O padre encarou o coronel. Seus olhos não desafiavam — iluminavam.

— Progresso sem alma é cimento morto. Ordem sem memória é ditadura de papel. Esta vila não nasceu da caneta do senhor, coronel. Nasceu da enxada, do terço e do tambor.

Por um instante, o silêncio se impôs.

— Pois saiba, padre, que se o senhor insistir em misturar altar com rua, vou pedir à diocese sua remoção. E se ela não vier, providencio uma por outros meios.

Mello, sereno, deu um passo à frente.

— Se me quiser fora, coronel, terá que me arrancar das mãos do povo. E essas mãos não soltam fácil.

Lobão se conteve. Não havia réplica.

O padre virou-se e saiu sem se despedir. Ao cruzar a porta da Intendência, ouviu os sinos da matriz ecoando ao longe. Como se soubessem.

Naquela noite, escreveu em seu caderno:

“O poder grita para se fazer ouvir. A fé apenas permanece — e isso basta para incomodar.”

Esse episódio registra o momento em que Padre Antônio Francisco de Mello deixa de ser apenas um religioso e se torna um símbolo de resistência cultural. Ali verificou-se ainda o início da hostilidade velada entre a administração política e a tradição popular, assim  como a intenção de corrompê-la. A persistente tentativa da manipulação da festa religiosa resultou, tempos depois, na separação definitiva da Festa do Divino dos festejos organizados pelo poder político no mês de agosto.


Um comentário:


  1. É interessante ver como a tensão entre o poder político e a religião pode levar a mudanças significativas, como a separação da Festa do Divino dos festejos políticos.

    ResponderExcluir