Em 1905, período de expansão urbana e reorganização política em Bom Jesus do Itabapoana, o distrito estava subordinado a Itaperuna, contra a vontade dos moradores, que não aceitavam ter perdido sua autonomia em 1890. Coronel Lobão era um homem prático, autoritário e defensor ferrenho da ordem republicana recém-instalada — mas pouco afeito à cultura popular e à religiosidade do povo.
O conflito entre o açoriano Padre Antônio Francisco de Mello e os coronéis e políticos adicionaram tensão dramática ao quadro da vila, revelando o caráter do padre e mostrando como fé, cultura e poder frequentemente disputavam o espaço da palavra e da praça.
O relógio marcava quatro horas da tarde quando Padre Mello adentrou o salão de tábuas largas da Intendência, acompanhado de um silêncio que parecia mais pesado que qualquer palavra. Na poltrona do centro, o Coronel Lobão, homem de bigode grosso, botas lustradas e olhar de comando, tamborilava os dedos na escrivaninha.
— Vossa Reverendíssima foi convocado, não convidado — disse o coronel, sem levantar-se. — Espero que entenda a diferença.
O padre parou diante dele com as mãos atrás das costas, a batina ligeiramente empoeirada da caminhada.
— Entendo perfeitamente. Quando não se quer ouvir, costuma-se chamar para calar.
Lobão se ergueu, agora medindo o padre com olhos de dono da terra.
— Chegou ao meu conhecimento que o senhor insiste em organizar procissões, festas e ladainhas sem solicitar autorização da Intendência. Estamos em tempos republicanos. Fé é para dentro da igreja, não para a rua.
Mello respirou fundo. Escolheu as palavras como quem escolhe sementes.
— A fé do povo não cabe dentro de paredes. Se o senhor tivesse escutado a cantiga da última Festa do Divino, veria que ela não pede permissão: ela brota. E quando brota, toma a praça.
O coronel se aproximou, a voz baixa, mas firme:
— Padre, seu ofício é rezar. Não incendiar corações. Estamos tentando civilizar esta vila. Ordem, progresso. Entende?
O padre encarou o coronel. Seus olhos não desafiavam — iluminavam.
— Progresso sem alma é cimento morto. Ordem sem memória é ditadura de papel. Esta vila não nasceu da caneta do senhor, coronel. Nasceu da enxada, do terço e do tambor.
Por um instante, o silêncio se impôs.
— Pois saiba, padre, que se o senhor insistir em misturar altar com rua, vou pedir à diocese sua remoção. E se ela não vier, providencio uma por outros meios.
Mello, sereno, deu um passo à frente.
— Se me quiser fora, coronel, terá que me arrancar das mãos do povo. E essas mãos não soltam fácil.
Lobão se conteve. Não havia réplica.
O padre virou-se e saiu sem se despedir. Ao cruzar a porta da Intendência, ouviu os sinos da matriz ecoando ao longe. Como se soubessem.
Naquela noite, escreveu em seu caderno:
“O poder grita para se fazer ouvir. A fé apenas permanece — e isso basta para incomodar.”
Esse episódio registra o momento em que Padre Antônio Francisco de Mello deixa de ser apenas um religioso e se torna um símbolo de resistência cultural. Ali verificou-se ainda o início da hostilidade velada entre a administração política e a tradição popular, assim como a intenção de corrompê-la. A persistente tentativa da manipulação da festa religiosa resultou, tempos depois, na separação definitiva da Festa do Divino dos festejos organizados pelo poder político no mês de agosto.
ResponderExcluirÉ interessante ver como a tensão entre o poder político e a religião pode levar a mudanças significativas, como a separação da Festa do Divino dos festejos políticos.