Lições
do mensalão
Luciano Rezende
“A
história de toda a sociedade até aqui é a história de lutas de classes. Homem
livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, burgueses de corporação e
oficial, em suma, opressores e oprimidos, estiveram em constante oposição uns
aos outros, travaram uma luta ininterrupta, ora oculta ora aberta, uma luta que
de cada vez acabou por uma reconfiguração revolucionária de toda a sociedade ou
pelo declínio comum das classes em luta.” Karl Marx e Friedrich Engels (Manifesto
do Partido Comunista).
Por
mais inequívoca que esta sucinta frase acima possa parecer, muitos intelectuais
relutam em aceitar a luta de classes como motor da história. O campo
conservador ousou a proclamar o fim da história. Setores da esquerda
progressista titubeiam e imaginam um mundo do faz-de-conta - talvez porque parte
dela decidiu viver encastelada em seus escritórios e gabinetes, rodeada por
mimos de bajuladores e interesseiros prontos a puxarem o tapete na melhor
oportunidade -, onde a sociedade goza de um novo marco civilizatório, regido
por leis democráticas, com espaço e respeito ao debate fraterno de ideias
antagônicas, garantido por um Estado Democrático de Direito acima do bem e do
mal, fiscalizado por meios de comunicação que vão se aperfeiçoando em nome da
liberdade de expressão. Doce ilusão.
Na
vida real, é cada vez mais recorrente assistirmos aqueles que ascenderam
socialmente empurrarem a escada para que outros não subam. Não se trata de um
fenômeno da tal nova classe média. É a luta de classes, renhida, nua e crua,
com toda sua polaridade social.
No
âmbito das relações jurídicas, o entendimento sobre seus interesses de classe
devem ser buscados nas condições da existência material de uma determinada
sociedade. É a isso que Marx e Engels chamavam de superestrutura e que abrange
as esferas política, religiosa, jurídica, ou seja, as instituições responsáveis
pela produção ideológica da sociedade. Sobre o tema, Marx foi categórico em sua
obra conhecida “Para a crítica
da economia política”: “(...) O resultado geral a que cheguei
e que, uma vez obtido, serviu-me de fio condutor aos meus estudos pode ser
formulado em poucas palavras: na produção social da própria vida, os homens
contraem relações determinadas, necessárias e independentes de sua vontade,
relações de produção estas que correspondem a uma etapa determinada de
desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade destas
relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real
sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, e a qual
correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da
vida material condiciona o processo em geral da vida social, político e
espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao
contrário, é o seu ser social que determina sua consciência. Em certa etapa do
seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em
contradição com as relações de produção existentes. Sobrevém então uma época de
revolução social. Com a transformação da base econômica, toda a enorme
superestrutura se transforma.”
Pois
bem. Mesmo no próprio PT - e em outras agremiações políticas de esquerda -,
muitos velhos combatentes, inclusive aqueles que passaram pelos anos de chumbo
da ditadura militar, olvidaram-se dessas velhas teses marxistas. O episódio do
mensalão mostra-nos claramente isso.
É
notório que muitos jamais supunham o atual desfecho do caso mensalão, com José
Dirceu, Genoíno e Delúbio presos. Subestimaram o ódio de classes que está
arraigado nos aparelhos da superestrutura jurídica e política, as quais,
segundo Marx, “correspondem formas sociais determinadas de consciência”. Em
suma, não é a consciência de um Joaquim Barbosa que determina seu ser, suas
ações. Mas ao contrário, é o seu ser social – cada vez mais bajulado pelas
elites - que determina sua consciência.
Desde
o início, o caso mensalão foi subestimado pelo PT justamente por carecer de
convicção nestas teses marxistas. Por desdenhar o inimigo de classe.
Delcídio
Amaral, deputado federal pelo PT do Mato Grosso do Sul, por inúmeras vezes menosprezou
a fúria da direta e optou por um tipo de “coexistência pacífica” em uma disputa
que se anunciava ser fratricida desde o começo. Uma vez mais a direita se
mostrava disposta a sangrar o governo petista, atacando os principais nomes da
legenda, até chegar a Lula. Lembremos que a relatoria da então CPI dos Correios
- que depois degringolou para a investigação do suposto mensalão - foi dada de
mãos beijadas ao deputado Osmar Serraglio - aquele mesmo que apareceu nas fotos
sendo carregado pela oposição quando conseguiu aprovar seu relatório final.
Nesse
mesmo desdém, o professor titular de ética e filosofia política da USP, Renato
Janine Ribeiro, em artigo publicado no Valor Econômico desta última segunda
(18/11), considera que o “efeito pedagógico do julgamento (do mensalão) foi
quase nulo”. Qual pedagogia o ilustre professor esperava surgir da luta de
classes no Brasil? Só se for um novo tipo de “pedagogia da opressão” ou coisa
similar.
Segundo
o professor Janine Ribeiro, nesse mesmo artigo, “é básico para qualquer
analista político que a democracia se distingue dos outros regimes porque nela
há adversários e não inimigos. Ela não é guerra”. Prossegue: “A democracia é o
único regime no qual a divergência é admitida, e a oposição – que ao longo de
milhares de anos foi presa, banida, executada com requintes de crueldade – tem
o direito de falar, e de tornar-se governo”. Com todo respeito que merece o
professor, suas afirmações chegam a ser demasiadamente ingênuas para quem se
dispõe a debater política.
A
direita brasileira que décadas atrás patrocinou o golpe militar, e por
consequência o extermínio de centenas de brasileiros, está por aí esperando
outra oportunidade para, nas próprias palavras de um de seus expoentes, o
ex-senador Jorge Bornhausen, “acabar com essa raça”. Nenhuma divergência é
admitida no principal semanário do país - a revista Veja. Ter o direito de
falar é muito pouco. É preciso que os trabalhadores tenham o direito a serem
escutados – o que é impossível no capitalismo.
Se
a democracia burguesa não é uma guerra – pelo menos escancarada - por que levaram
Getúlio ao suicídio? Por que mataram - direta ou indiretamente - João Goulart?
Por que a maior democracia do Ocidente – como esses tais analistas gostam de se
referir aos Estados Unidos - bombardearam o Iraque à revelia da ONU sem que
houvesse uma única prova de existência de armas químicas ou nucleares neste
país? Se não é guerra, por que então a direita brasileira não hesita em suas
teses golpistas para voltar ao poder? Por que disseminam diuturnamente o ódio
de classe nos grandes meios de comunicação?
Por
tudo isso, o caso do mensalão deve servir de aprendizado para as forças
progressistas, populares e de esquerda. Não se pode alimentar ilusões em
relação a esta burguesia raivosa. Pela vontade das elites, Genoíno teria
morrido torturado já no Araguaia.
Não
é caso, logicamente, de a esquerda se isolar politicamente. No atual sistema
político, a constituição de amplas alianças políticas envolvendo setores da
burguesia e da pequena-burguesia é fundamental para que conquistas democráticas
e populares sejam alcançadas. É imperioso ganhar musculatura para reverter a
desfavorável correlação de forças.
Entretanto,
é importante lembrar um episódio marcante da história de lutas da classe
operária, nos idos de 1875, quando o partido social democrata alemão debatia o
programa de Gotha. Na oportunidade, Marx e Engels alertaram: “Já que é
necessário unir-se, pactuai acordos para alcançar os objetivos práticos do
movimento, mas não trafiqueis com os princípios, não façais concessões
teóricas”.
Mais
uma vez, Marx e Engels, atuais na análise da velha luta de classes. Como diziam
os mais antigos: “Ou se aprende por bem, ou se aprende por mal”.
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