Entardecia em Pirapetinga. O sol caminhava infalível para as montanhas em direção à fazenda das Areias. Raras nuvens. Uma espécie de neblina fina toldava a tarde.
Eu revirava velhos documentos, antigas anotações, ao acaso, sem objetivo definido quanto a encontrar algo especial. Pego um pedaço de papel retangular com consistência diferente, mais endurecido. Viro. É uma foto de minha escola em 1941, em frente ao salão ligado à residência de Agostinho Boechat.
Cerca de quarenta crianças, talvez mais. Quase todos descalços e com embornais onde guardavam cartilha, lápis e um caderno.
As mais diferentes fisionomias e cores. Sem uniformidade de raça. Na foto, poucos sorriam. Os meninos das roças, mais atrás, algo tensos, sem alegria. Eram pouco participativos. Ficavam a manhã inteira me acompanhando no quadro negro. E eu era sozinha para todas as séries. Enquanto usava o quadro para um grupo, os outros faziam deveres que, na véspera, eu preparara em seus cadernos. Luta insana. Quarenta cadernos. A velha cartilha e a tabuada, companheiras. Interessavam-se mais por História do Brasil, quando eu dramatizava o mais possível para prendê-los. Nas aulas, os brancos sentavam-se à frente, não porque fossem guiados para aquele local, mas, com toda probabilidade, um impulso natural de separação.
A grande maioria, provavelmente frequentava as aulas não por insistência dos pais, que necessitavam deles para o trabalho na lavoura, mas para evitar, pelo menos pela manhã, a faina braçal.
Na verdade, tal qual hoje, em muitos locais do Brasil, era exploração de trabalho infantil. Na época, esse aspecto ainda não alcançara a atenção das autoridades. Não há nada mais extenuante do que capinar e roçar pasto sob o sol. Eu os exortava a pensar neste aspecto de suas vidas, esclarecendo sobres a possibilidade de um futuro melhor com o estudo. Mas, em vão. Chego a pensar que, presos à simplicidade da vida no campo, tinham medo de sair de seus terreiros e, assim, continuavam a vida dos pais. Alguns eram tão inteligentes que me levavam à frustração saber que não poderiam seguir em frente, que não passariam do primário.
Mas o que traziam aquelas fisionomias? Quais conselhos recebiam de casa? Estou certa de que os pais não lhes orientavam quanto a um futuro melhor. Enfim, eu era a comandante de uma nau na qual uma parte da tripulação era de desesperançados.
E iam eles no compasso de suas vidas. Os mais avançados, brilhando, mas grande número sem a força de quem quer aprender.
Tanto na década de 40 como agora, o problema do Brasil se resume às oportunidades. Nos primeiros trezentos anos de nossa colonização, restringimo-nos ao litoral e à monocultura. A virada industrial, provedora de ofertas de trabalho, demorou até que São Paulo, nessa área, abriu os caminhos para a riqueza nacional. Mas isso foi bem depois da Revolução Industrial na Inglaterra. No entanto, esse tempo que se perdeu ceifou esperanças, carreiras de gerações.
Na foto, eu me lembro de todos daquela turma. Raros sorrisos abafados pela timidez. As fisionomias eram cheias de expressão, marca, na maioria, de vida sofrida nas roças. Cada face me parecia uma dor. Teriam comido o quê como café da manhã? Talvez café de garapa e mandioca cozida. Chegavam com fome. Traziam bananas para merenda. Não tinham possibilidade de um bolo ou de uma broa com café com leite. Os pais eram meeiros e dinheiro somente no final da temporada do café.
Atualmente, em nosso país há mais condições para avançar nos estudos. Temos, até, grupos diferenciados que chegam aos sistemas de quotas nas universidades. Mas, a demanda por possibilidades é, ainda, desafiadora. A mesma situação de meus meninos das roças. É claro, os jovens nas grandes cidades são vítimas do contexto social (desemprego, comunidades-bolhas, drogas, tráfico, abandono, perpetuadores do círculo de pobreza). Atualmente, mais de 100 mil crianças, entre 08 e 17 anos, nessa situação de exploração de trabalho infantil. Assim, meus alunos daquela época e os atuais, nessa longa caminhada, permanecem em situações estanques quanto à oferta de possibilidades
E passavam o primário. E chegavam à admissão ao ginásio. Mas, para onde ir aquela massa de meninos, vencida a primeira etapa de seus aprendizados? Ou melhor, para onde foram?
Os garotos voltaram à lavoura. A arar, roçar, capinar o arroz e o milho, na mesma vida ancestral. Aguardava-os um casamento precoce, em geral uma das meninas da vizinhança. E lá ia a vida.
Entretanto, tenho que ressaltar que essa turma da lavoura teve um papel muito importante na produção de gêneros durante a Segunda Guerra Mundial. Foram eles que seguraram o Brasil, pois não havia, ainda, a expansão do agronegócio.
Quando terminei o curso normal no Santa Marcelina, em Muriaé, fui para Vargem Alegre, mais tarde Pirapetinga de Bom Jesus, com desejo imenso de ensinar, de preparar pessoas para a vida, para educar e ver o progresso.
No entanto, com o tempo, ao ver tantos impedidos de continuar, cheguei a pensar na inutilidade de estar ensinando, mas voltei meus impulsos para o que conseguiam ultrapassar essa etapa. Coroaram meu esforço.
Ah... meu nome, Iracema.
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