sábado, 19 de fevereiro de 2022

PEDRO ROSA

 

Elcio Xavier



Era uma fria noite de junho. Ele caminhava desleixado em direção à sua casa, situada do outro lado da pracinha. Voltava de um baile na residência do Juca Andrade, antigo morador do povoado. Esses bailes aconteciam invariavelmente todos os sábados, qualquer que fosse o tempo, e lá ia o conhecido cabo, comandante do destacamento policial da pequena Vila, a fim de assegurar a ordem naquele grotesco salão de danças.

Desta vez, entretanto, vinha de cabeça baixa e passos irregulares, absorto num pensamento distante. Era o tipo comum dos habitantes do sertão brasileiro. Homem rude, de traços grossos e pele escura dono daquele recanto afastado do norte do Município. Seus olhos grandes e vivos destacavam-se fortemente na sua face queimada e coberta por sulcadas rugas que lhe davam uma expressão mística de ódio e coragem desmedida. Seus cabelos negros, cortados baixos na cabeça, estavam cobertos pelo quepe amarelo descorado. Sua farda caqui, já esmagada pelo longo uso, mostrava alguns remendos nos joelhos, punhos e gola. As botinas grandes, sempre ruças, bastante deformadas pelos seus pés largos, eram como pranchas negras que deixavam enormes rastros aos quais era difícil se atribuir fossem feitos por um pé humano. Trazia pendente do forte cinturão de couro preto uma pesada pistola que o fazia gingar um pouco e que já havia calejado sua mão cabeluda. Pedro Rosa era o seu nome de batismo, mas pelas façanhas que já praticara, todas de grande bravura e intrepidez, e o seu fiel cumprimento dos deveres de homem da lei, fora apelidado por “Jararaca”.

Este homem, contudo, distinguia-se de muitos outros que tinham passado por ali. Pouco falava e quase sempre era visto sozinho, onde quer que fosse e por mais arriscada a missão a cumprir. Trazia constantemente consigo uma pequena vara amarela, com a qual afugentava os moleques jogadores de futebol das ruas. Não tinha instrução, mas sabia fazer justiça, embora a seu modo, o que lhe dava uma grande reputação por toda aquela região. No seu ramo, o do policiamento do Arraial e circunvizinhança, ninguém interferia, nem mesmo as autoridades do lugar, compostas, na sua maioria, de homens sem moral e caídos na lama, que se valiam dos seus grandes bens de fortuna para explorar os pobres lavradores do povoado. Caráter reto, dentro da sua maneira áspera de falar e de agir, tomado do complexo da autoridade, não tolerava que suas ordens deixassem de ser cumpridas e praticava mesmo, nas horas de furor, certas arbitrariedades com os faltosos, espancando-os em plena praça pública, ou aplicando-lhes as penas mais escandalosas, como encarcerá-los num cubículo onde o prisioneiro só podia estar de pé, sem poder se assentar, tendo um fio d’água gotejando sobre a cabeça descoberta ou coisas semelhantes...

Sua fama de homem valente corria pelos arredores, e, de fato, ele nunca conhecera o medo. Já havia enfrentado sozinho, no Córrego Seco, dez capangas do João Tavares e pusera todos a correr. Na fazenda do Córrego Torto prendera um doutor e o filho do delegado, levando-os para o “cubículo”. Ajuntam-se muitos outros fatos ao seu “glorioso” passado, do qual se orgulhava, seu nome era pronunciado com respeito; receosos de ofendê-lo, pois surgia em toda parte quando menos se esperava, como uma alma do outro mundo. 

Certa vez, quando passava pela Rua das Taboinhas, na entrada do Arraial, percebeu um ruído estranho que o despertou do seu sonho. Foi uma gargalhada curta, histérica, vinda de um armazém de grandes portas amarelas e sujas, cerca de cem metros dali. Parou e aguçou o ouvido. Nada percebeu, tudo era silencio de novo. Seu coração batia forte e pelo seu cérebro passou rápida a imagem de uma nova glória para se juntar ao seu passado brilhante. Já se supunha empenhado numa luta titânica, de onde em breve sairia vencedor, levando na frente os criminosos, que certamente praticavam um roubo naquele velho armazém. Esgueirou-se mansamente por trás de uma árvore copada e ficou na espreita. Uma tênue réstea de luz feriu seus olhos acostumados à escuridão da noite. Caminhou de leve, quase rastejando, em direção ao prédio. Era uma casa que ele conhecia muito bem, pois fora ali a trágica luta de dois negros vindos de Minas Gerais. A cena de luta daqueles dois gigantes passava pelo cérebro como uma fita de cinema, fazendo-o soltar uma exclamação de raiva, por ver perturbados os seus planos de ataque. “Como ousavam esses ladrões virem roubar dentro da Vila onde sou o chefe do destacamento policial! Como eram audaciosos aqueles patifes que estavam ali atrás daquelas paredes sujas! Cercarei a casa pelos fundos e prenderei todos” - dizia baixinho. “E aquele que resistir à prisão, já sabe, a minha arma vai falar!” Não, ele não queria dar nem um tiro; prenderia todos vivos para entregá-los ao Tenente, o homem das duas fitinhas brancas no ombro da túnica, com dois soldados fortes de cada lado. E como ele quis ser, naquela hora o Tenente Embassaí, para não ter que dar os seus prisioneiros a ninguém! Como seria bom se tivesse duas listras brancas na sua túnica, e passou a mão grossa pelo ombro. O dono deste armazém – pensava – eu o conheço bem; conheço toda a sua história. Veio corrido da Bahia, sem um vintém, e hoje é rico. “Se não fosse pela audácia desses ladrões, eu não me importaria e deixaria levarem tudo. Mas não, isso nunca! Aqui em Cruz Alta não permitirei isso!” 

Chegou de mansinho junto a porta principal e colou o ouvido. Seus olhos grandes brilhavam de satisfação. Dir-se-ia que os ladrões já tinham sido identificados, um a um, e que o plano de prisão já tinha sido modificado, para que ninguém escapasse à prisão.

Mas era o contrário. Falavam em tom quase imperceptível, medrosamente, temendo ferir a solidão da noite. Seu ouvido preso à tábua áspera se deliciava com as palavras que ia absorvendo: “Na verdade ele é um grande cabo!” “Sim, é muito valente e não teme coisa nenhuma. “Eu tenho medo dele, sim, tenho”. Imagine eu em suas garras!” Diziam entre si os ocupantes do armazém. O coração do cabo Jararaca batia mais acelerado e seu cérebro começou a dar os últimos repasses no plano já traçado. Entraria pelos fundos, soltaria os cavalos, “pois certamente deve haver cavalos”, e depois, empurrando a porta, quando todos estivessem juntos, daria a voz de prisão. Sua mão escorregou instintivamente para o coldre e caiu na coronha do revólver, para logo depois ir até ao quepe, e empurrá-lo para o alto da cabeça – este gesto significava que ele estava preparado para tudo. Sentiu passar pelo corpo uma onda de sangue novo e quente que lhe enrijeceu todos os músculos. Aquele homem de pouca instrução, feito cabo da Força Policial do Estado e designado para comandar o destacamento daquela pequena Vila, cuja fama de antro de bandidos corria por toda a região, sentiu chegada a sua oportunidade de praticar a maior façanha de sua vida. Iria prender, sozinho, toda uma quadrilha de ladrões. Começou a dar a volta ao prédio de paredes sujas e mal cuidadas. Os pensamentos de glória, de elogios do Tenente que ele tanto invejava e a notícia de uma página inteira que iria publicar o jornal do Senhor Camelo, o semanário do Município, afluíam vertiginosamente à sua cabeça. E a sua fama, como iria “correr”...

Deu a volta completa, saltando um valão sujo, onde mergulhou as botinas, molhando toda a perna e transpondo uma cerca de arame farpado, achou-se diante da porta dos fundos do armazém. Desamarrou dois cavalos que estavam presos a uma figueira baixa e os levou para longe. Regressou, de mansinho, subiu a escada de madeira que dava acesso à porta e, com o coração batendo e sua mão firme na coronha de sua arma, escutou. As vozes ainda eram veladas e um murmúrio distante chegava aos seus ouvidos, tal como se tivessem naquele momento arrombando o cofre do armazém. Julgou ser o instante exato para entrar em ação. Olhou ao redor e cuspiu para trás. Deu um passo a frente e abriu violentamente a porta. Suas mãos baixaram lentamente, seus olhos quase saíram das órbitas e seus movimentos faltaram: diante dele, lá no fundo do balcão de madeira, o prefeito da cidade, assentado num caixote e deitada no seu colo, Maricota, uma sujeita da zona de meretrício da Vila.

Jararaca recuou, baixou os olhos e deixou aquele lamentável cenário pecaminoso.

.     .    .

O prefeito viajou inesperadamente para a capital da Província, de onde não voltou até esta data. Dizem que sofreu um mal súbito na viagem, vindo a óbito, e seu corpo foi transladado para Santo Antônio das Flores, sua terra natal. Da mulher cuidou o silêncio.


Do livro Lembranças - Contos




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