terça-feira, 24 de outubro de 2023

Recordando o meu tempo de autoridade

 

Osório Carneiro



 

Como se recordam os leitores, a deposição do então presidente Washington Luiz verificou-se a 24 de Outubro de 1930, data em que uma junta Militar assumiu as rédeas do  país. As nossas forças armadas e todas as policias militares dos vários Estados, no entanto, conjuntamente com elementos civis, se mantiveram vigilantes e de armas na mão, exigindo que fosse empossado no governo o Sr. Getúlio Vargas, que era em verdade o chefe supremo da Revolução e que se achava atuando no Rio Grande do Sul, à frente de um grande contingente Militar. 
Alguns dias depois, finalmente, a junta militar lhe transferia, entre aclamações gerais, a direção do Governo. A situação do País no entanto, ainda demorou algum tempo a normalizar-se, tendo-se em vista que só depois de empossado começou o sr. Getúlio Vargas a nomear os seus auxiliares de administração, bem como os interventores nos Estados, cabendo a estes, por sua vez, nomear os prefeitos de cada município. Foi o Sr. Plínio Casado, se não nos enganamos, o primeiro interventor da Velha Província.
Apesar de terminada a luta armada há mais de três meses, Bom Jesus, no entanto, continuava a sofrer as suas horríveis consequências por falta de trabalho, atravessando assim, como já dissemos, o período mais agudo de sua história.
E tanto isso é verdade que na edição da primitiva "A Voz do Povo" de 3 de janeiro de 1931, fizemos ao nosso povo, em comissão, o seguinte apelo:
"A miséria aí está, bastante e ameaçadora, batendo às portas dos desgraçados!"
Pelos bairros distantes, em palhoças humildes, há muita gente passando fome.
Domingo passado, quando a banda tocava no jardim, enchendo o ambiente de sons melodiosos, fomos percorrer o antro da miséria. E vimos coisas de comover o mais endurecido coração.
Inúmeras famílias pobres, desprotegidas da sorte, estavam na mais extrema penúria! Crianças trôpegas e doentes, de olhos baços, não encontraram, por parte dos pais, a necessária alimentação. E os pobres pais, desorientados, sem emprego, sem crédito, sem dinheiro e sem nada que represente valor, não encontraram um meio honesto com que pudessem saciar a fome de seus filhos. Não pintamos um quadro. Limitamo-nos a narrar a coisa como ela se apresenta, sem o menor exagero.
Nesse percurso que fizemos pelas choupanas miseráveis, a primeira pessoa com quem deparamos, numa casinha desconfortável, foi com uma senhora de 45 anos, de nome Maria da Conceição. Essa pobre mulher, que era mãe de uma filhinha de colo, não conseguiu ainda, arranjar um emprego. Andou por si, batendo em várias portas, à procura de uma colação. Tudo porém infrutiferamente.
Lá mais adiante, na Avenida Chico Hespanhol, em companhia de uma filha solteira, ambas de luto, a viúva Maria Batista do Carmo estava desprovida completamente de recursos. Quando lá aparecemos, às 4 horas da tarde, a pobre mulher ainda não havia almoçado. No momento em que nos retirávamos, lá chegava uma pretinha trazendo-lhe para a refeição do dia duas raízes de mandioca. Passamos também pelo rancho de José Nicolau, casado, pai de cinco filhos menores. O homem não encontra trabalho em parte alguma. Ao ver-nos, pediu-nos por caridade que conseguíssemos um trabalho qualquer, ainda que por preço baixo, ou mesmo a troco de mantimentos para alimentar os seus filhinhos. Fazia a pena ouvir a súplica desse homem. Nas mesmas condições de José Nicolau, encontramos muitos outros chefes de famílias, na mais extrema penúria.
E é nesse momento amargo, de dificuldade, que apelamos para os sentimentos religiosos do nosso povo.
Apelamos para as mães de família, para os nossos médicos, para os farmacêuticos, o comércio em geral, os lavradores, enfim, queremos de cada filho de Deus uma ajuda, um óbolo qualquer, para matar a fome de tanta gente necessitada! Que venham todos em socorro desses infelizes, que querem trabalhar e não encontram serviço. Que lhes consigam pelo menos, uma colocação,por mais modesta que seja!
Nós nos encarregaremos de procurar o dinheiro ou os gêneros fornecidos, publicando em "A Voz do Povo", oportunamente, os nomes de todas as pessoas generosas que atenderem ao nosso apelo.
O sr. José de Oliveira Borges já pôs à nossa disposição, para os pobres,  mercadorias no valor de 70$000. Igual gesto de humanidade tiveram os srs. Boanerges Silveira, cap. Malvino de Souza Rangel e Manoel Furtado Lopes, oferecendo de livre e espontânea vontade, o primeiro dois sacos de feijão, o segundo 30 kg do mesmo artigo e o terceiro um saco de fubá. Esperamos, de outros, a mesma colaboração. Bom Jesus, 31 de dezembro de 1931. A COMISSÃO. Osório Carneiro, José Tarouquela de Almeida e Satyro Nogueira ".
E o apelo foi atendido?
Ora se foi. Venham ver em nossos arquivos, a longa lista de oferecimentos, que seria longo enumerar. Eram sacos e mais sacos de gêneros alimentícios, havendo também ofertas menores de acordo com a possibilidade de cada um. Dentre tantos, queremos citar apenas os nomes dos seguintes: Altivo Casemiro de Campos, que ofereceu uma caixa de bacalhau e 5 latas de banha de dois quilos; Sebastião Rodrigues do Carmo, 1 novilho de 7 arrobas e 1 saco de fubá, e Francisco Hooper de Oliveira um novilho também de 7 arrobas, mais ou menos.
Não foi em vão, pois, o nosso apelo. Inúmeras  almas generosas vieram ao nosso encontro, trazendo-nos os seus oferecimentos espontâneos, com o que, mercê de Deus, conseguimos, senão resolver, pelo menos minorar a situação de muitas famílias paupérrimas que estavam, por assim dizer, a morrer na miséria. Muitos anos, na verdade, já se passaram. A índole do nosso povo, porém, em nada se alterou.
O bonjesuense de ontem, bom e caritativo, continua sendo o mesmo bonjesuense de hoje, sempre de alma aberta para a prática dos mais nobres sentimentos de humanidade. É, por isto mesmo, um grande povo, de que a cidade muito se orgulha, pelo seu espírito de bairrismo e relevantes serviços prestados à sua terra natal.


(Quarto artigo da série  "Recordando o meu tempo de autoridade", de um total de catorze, escritos  especialmente para o jornal O Norte Fluminense, em 1969 e 1970)



Nota do jornal O Norte Fluminense: Osório Carneiro é o patrono da Cadeira nº 29 da Academia Bonjesuense de Letras. Em 1928, fundou o jornal BOM JESUS JORNAL, juntamente com José Tarouquella de Almeida. Após curta duração, fundou A VOZ DO POVO em 6 de setembro de 1930, ano em que foi indicado para ser o Delegado da Revolução comandada por Getúlio Vargas, na região. Posteriormente, foi designado Subdelegado em Bom Jesus do Itabapoana, então 10º. distrito de Itaperuna, cargo que exerceu até 1933.

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