sexta-feira, 10 de novembro de 2023

E foi assim que mudei, que me mudei...

 


Napoleão Lyrio Teixeira 

Jamais esquecerei a cena. Devia ter, vamos dizer, meus quatro anos de idade. Estávamos de mudança, da nossa casa branca no Limoeiro, para a fazenda do Retiro que "seu" Capitão, meu pai, havia comprado. Os carros-de-boi, com a mudança, já haviam partido. Íamos nós, agora. Foi então que minha mãe, Dona Regina, pronta para partir - e como me lembro da bela roupagem de viagem, toda em veludo preto, que trazia - percorreu, aposento por aposento, da casa - e chorava! Deus meu! tantos anos viva e nunca olvidarei minha mãe chorando, chorando de saudades, por ter de deixar o mundo em que vivera, o mundo da primeira infância minha, que verei para todo o sempre.

Mudei muito. Fui militar. Rodei grande parte do Brasil. Cantamos a nossa tenda sobre os mais diversos chãos do Brasil. E fosse onde fosse, nossa tenda foi sempre um lar, porque havia uma Hylda a um lar dela fazer. "São precisos cem homens para fazer um acampamento; basta uma só mulher para fazer um lar" - provérbio árabe.

Mudei muito, dizia. Aqui mesmo em Curitiba, onde vivo há mais de 27 anos, troquei de casas uns pares de vezes. Na última que nos agasalhou por mais de 18 anos, quantas horas de alegria. De tristeza, também, que é assim a vida. Sempre "puxando junto", eu e minha companheira. O filho, emplumando, ganhando esporões de galo novo, soltando seu canto de chanceler - fazendo nome, rasgando caminho, casando-se, dando-nos netos. Amigos chegando, amigos partindo, e nós dois sempre unidos. Foi belo o nosso entardecer - e de nada nos arrependemos. Li, por aí, que um homem realmente satisfeito tem seus ontens todos arquivados, seu presente em ordem e seu amanhã sujeito a uma revisão instantânea. Confere, Bernard Shaw: "Que pena que a gente gaste a mocidade quando se é jovem". Escreveu ainda; " Se pudéssemos ser jovens ou velhos duas vezes numa existência, quantos erros evitaríamos na segunda...velhice" - nada mais exato.

Estou fugindo ao assunto. Falava da última mudança. Ou melhor, da penúltima, que a derradeira mesmo... - bem, deixa pra lá. Pois me mudei. Larguei casa grande, com quintal e jardim, e vim cá para estas alturas no vigésimo andar de onde se descortinam os mais distanciados panoramas. Se "seu' Fassbender fosse vivo e visse isso, repetiria frase quando, deslumbrado, viu, pela vez primeira, num dia de sol e céu azul, a beleza deste altiplano: " Gente! Estamos por cima do teto do mundo!" Apartamento, "apertamento" - é preciso ajustar-se à nova linha da vida, ser pra frente.

Foi duro nos separarmos de velhos móveis queridos. Sem contar dois caminhões que foram para nossa casa de praia daqui, sem contar dos outros passados adiante, quanta coisa dada, dada mesmo, de presente. E ainda sobrou muito, de quebra, para o libanês gamado pela casa, comprada à vista. Ficou em boas mãos, pois sentimos que também ele vai amar o velho ninho.

Mas, dureza mesmo, foi o abandonar de muitos velhos papéis. Rasguei e botei fora meio tonelada de escritos meus: trabalhos científicos; três livros inéditos; meu primeiro (também não publicado) romance, escrito na força dos meus vinte e seis anos em Macaé, onde morava. Nada mau. Muito para a esquerda falando da miséria dos párias da baixada; dos amores de um certo Dr Serpa por uma querida Isabel. O nome é que era meio grandinho: "O pântano reflete a luz das estrelas". Bem, para mim, não servia; relo com renovada emoção - rasguei-o sem pena. Deixemos o passado enterrar seus mortos.

E aquele mundão de livros, que não tinha onde guardar. Dei para meu filho, dei para o Deusdedith, doei cerca de 500 para estabelecimentos de ensino superior; outros tantos para um clube de serviço local distribuir por bibliotecas do interior. Sim, doei; livro que se amou, que nos trouxe horas de alegria espiritual - não pode ser vendido. É crime!

Havia livros destinados ao "exílio", que como que me olhavam, chorando, e como que diziam: "Eu não; deixe-me ficar; ajudei-o - lembra-se? - a ganhar alguns dos quatro concursos universitários que aqui fez". E outro "falava": " Pois então você mudou tanto assim, tanto endureceu o coração seu, que olvida as mensagens lindas de amor com que enfeitei as horas mais belas da vida sua?" De nada valha; ia cada qual para o "campo de concentração ", onde mãos outras, que não as minhas, iam folheá-los".

E a melancolia de dilacerar velhas cartas. Com aquele suave perfume que só as páginas amarelecidas das antigas cartas têm: "Cada um de nós morre um pouco quando alguém, na distância e no tempo, rasga alguma carta nossa, essa carta que perdeu todo o sentido, mas que foi um instante de ternura, de tristeza, de amizade, de vida" - está certo o cronista.

E de cada uma que, penalizado, rasgava, como que manava sangue. E os fragmentos que, acaso apanhados pela brisa vadia, partiram, janela em fora, eram como pequenas borboletas brancas a palpitar, palpitar, levados pelo vento, para longe, cada vez mais distantes, cada vez mais longe. 

Tudo acabado, partimos. Em busca de novo pouso. Onde reorganizaríamos a vida nossa. Vida nova. Sem olhar para trás. Para o passado. Esperanças renovadas. Sem olhar no que foi. 

Mesmo porque amanhã é outro dia...

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