domingo, 12 de novembro de 2017

Tio Oscar, Zebinho, Elcio Xavier e a peça teatral de Padre Mello

Oscar João Alves de Souza, o Tio Oscar, faz a alegria da criançada e de seus pais há 17 anos

Oscar João Alves de Souza, conhecido como Tio Oscar, faz, há 17 anos, transporte de crianças e pais, nos fins de semana e dias de festa, nas ruas de nossa cidade.

Pode-se dizer que Tio Oscar é o equivalente a Euzébio Garcia Terra, conhecido como Zebinho, que possuía um carro de tração animal em nossa cidade há 91 anos atrás.


Em 1926, Padre Mello - pároco oriundo da Ilha de São Miguel, do Arquipélago de Açores (Portugal), e que aqui chegou no dia 18 de junho de 1899 - preocupado com o estado crítico em que se encontrava o "carro" de Zebinho, compôs uma peça teatral intitulada "Os Cavalos de Zebinho", para angariar recursos e comprar um carro novo para o seu proprietário. Octacílio de Aquino, um dos gênios de nossa literatura e pupilo de Padre Mello - e que assinava seus textos como "Octaquino" - escreveu, por sua vez, uma poesia intitulada "O carro de Zebinho", publicada juntamente com a peça teatral. 

Ambas as poesias estão registradas no final desta postagem e foram resgatadas graças ao poeta bonjesuense Elcio Xavier, um dos grande nomes da nossa literatura, que doou o respectivo livro ao ECLB (Espaço Cultural Luciano Bastos).

Deve-se registrar que Pe. Mello assinalou, na época, que o referido carro era "o único a tração animal no meio de já considerável número de automóveis". O mesmo ocorre, hoje, com o "carro" do Tio Oscar.







OS CAVALOS DO ZEBINHO


Fonte: https://sites.google.com/site/padreantoniofranciscodemello


Nota do Jornal: a peça teatral "O Zebinho", de Pe. Mello, e o poema "O CARRO DO ZEBINHO" de autoria de Otacílio de Aquino - que assinava seus textos como OCTAQUINO - fazem parte do livro "Os Cavalos do Zebinho", publicação de Padre Mello, doada ao ECLB (Espaço Cultural Luciano Bastos) pelo poeta bonjesuense Elcio Xavier, um dos maiores nomes de nossa literatura, e que traz, ao final, o seguinte texto: 


"EXPLICAÇÃO
                               A quem, fora desta sociedade de Bom Jesus, ler este opúsculo e fizer reparo na natureza do assunto revestido dos atavios da arte ou levar a curiosidade ao desejo de uma explicação, creio suficiente dizer que o fim do autor foi auxiliar por este modo a Euzébio Garcia Terra na aquisição de um novo carro, que continuará, talvez, a ser, como tem sido, o único a tração animal no meio do já considerável número de automóveis que se cruzam vertiginosamente em nossas ruas. É este trabalhinho uma brincadeira em família e como tal seja considerado ao longe.
O AUTOR"

*******
OS CAVALOS DO ZEBINHO
PERSONAGENS 
PATRÃO (Zebinho) ... Jorge Teixeira
CRAVO (Cavalo) ... Edgar de Oliveira


PRIMEIRO ATO

CENA 1
PATRÃO
(entra pela D e examina o palco como quem procura alguma coisa mas sem notar a Plateia).

Ué! Pois eu tinha dito
que os meus famosos cavalos
estavam aqui! bonito!
 Aonde irei encontrá-los?!

No pasto? Lá eu não creio,
não o conhecem; corri
as ruas todas. O meio
é esperá-los aqui.
(procurando assentar-se e notando a Plateia)
Oh tanta gente! E eu em mangas
de camisa sem botão!...
calças que parecem tangas...
Que vergonha! num salão...

(tirando o chapéu e pondo-se a mirá-lo)
O chapéu... ninho de ratos...
esburacado... rotinho...
nos pés, sinal de sapatos...
que querem? sou o Zebinho!

Além disso eu procurava
os meus cavalos somente;
nunca supus que encontrava
em vez deles tanta gente.

Perdão, senhores!...
(apanhando uma ideia)
Quem sabe
se os viram aqui? é sério!
Pois no possível bem cabe
mesmo que fosse mistério.

Em sonetos e em poema
já vimos um burro olhando
para o cartaz de um cinema,
outro na farmácia entrando,

e ainda outros em férias
aliviados da carga
folgando, contando lérias
e até discursando á larga.

Que admira pois, meus senhores,
que os meus cavalos andassem
por palcos e bastidores
e mesmo representassem?

Querem saber? o meu Cravo
tem vocação para a cousa.
Quando trabalha é um bravo,
mas se algum tempo repousa

fica assim como um palhaço,
folgazão e divertido,
salta, empina, marca passo...
depois... faz-se delambido...

O Dourado é mais sisudo,
é mais sério e sossegado.
Também, precisa de tudo
um elenco organizado.

Tenho um grupo bem distinto...
(escutando um tropel à E)
Aí vêm os meus cavalos.
Bem eu dizia, não minto,
que havia aqui encontrá-los.


CENA II
(o mesmo, o Cravo e o Dourado)

PATRÃO
(para a Plateia indicando os cavalos que entram)

Vejam todos! É um brilho!
Rapaziada decente!
(Para os cavalos)
Então! Vocês vêm ao milho
ou divertir essa gente?

CRAVO
A tudo se porventura
for preciso.

DOURADO
Somos dois...

PATRÃO
(interrompendo e pondo milho no concho)
Fica milho com fartura
o resto será depois.
(cai o pano)




ATO SEGUNDO

CENA 1

PATRÃO, CRAVO E DOURADO
(Cravo e Dourado voltados para a Plateia, em movimentos próprios de cavalos folgazões).

PATRÃO
(entrando pela D vai ao cocho e nota que está vazio. Depois dirigindo-se aos cavalos)


Hum! 0 cocho está limpo e as panças estão cheias!
Isso mesmo é que eu quero. Eu nunca ponho peias
Aos dentes de vocês. Milho é com abundância.
O milho dá bom sangue e o sangue dá substância.
Agora não é mau passar-lhes uma escova.

(vai buscar a escova. Ao voltar encontra o Cravo agitado)

Que isso lá, meu Cravo? Aqui ninguém se mova!
É preciso tirar o pó e o carrapicho 
(passando a escova no Cravo que não a consente e dá pinotes)
Pois ainda não pus o selote e o rabicho
E ergues a popa assim como nau em mar bravo?!
Fica manso, rapaz! ... Assim...
(o Cravo respinga)
Que isso, Cravo?!

CRAVO


Não é nada, Patrão. Mas vamos toda vida
a amassar essa lama e retesar a brida
a arrastar (que vergonha!) esta coisa sem graça
que outrora foi um carro e é hoje uma carcaça?
Andamos a fazer um barulho esquisito,
que até mofa de nós qualquer um rapazito.
Os garotos da rua abrem prestes caminho
para gritarem rindo... "O carro do Zebinho!"
E isto já nos enjoa e até nos envergonha.
É verdade que aí não há quem nos suponha
inculpados no caso; entretanto, somos alvo
de desaforos tais, às vezes de um papalvo
mais bruto do que nós. E também não queremos
ver o nosso Patrão, a quem tudo devemos,
na boca desse mundo. Enfim, tudo se evita
acabando de vez com esta velha fita.
Patrão, melhor emprego encontra na cidade
e basta para nós pôr-nos em liberdade.

PATRÃO
(com ironia)

Muito bem! muito bem! meu velho amigo Cravo!
Tu até no pedir bem mostras que és um bravo.
Liberdade! E o sonho, a aspiração, o regalo
de toda boa gente e todo bom cavalo.
Mas, dize-me, faltou-te um dia porventura
aquilo que um voraz bucéfalo procura,
o mimoso capim e o saboroso milho?
Não te hei tratado bem como bom pai a filho?
Ferradura no pé, escova sobre o pelo,
banho de vez em vez, tesoura no cabelo,
enfim, todo o asseio e todo o meu carinho
que ficas parecendo um jovem cavalinho?
Ora, meu Cravo...

DOURADO
Irmão, o que o Patrão te disse
é a pura verdade. Em minha meninice
tantos mimos não tive e nem tu os tiveste.
Portanto, justo é que cada um se preste
a pagar em serviço o que recebe em trato.
Eu por mim estou bem e não serei ingrato.

CRAVO
Nem eu tão pouco, irmão. Se acaso dei patadas

PATRÃO
(atalhando) 
Obrigado! obrigado! amigos camaradas!
Outra coisa jamais esperei nem espero
dos amigos fiéis que distinguir, eu quero
entre todos os mais bucéfalos do mundo.

CRAVO E DOURADO
Obrigados! Também dizemos nós.

CRAVO

Segundo ia dizendo, se algo incongruente eu disse,
se em meu discurso ouviste alguma cavalice,
sabes que a minha escola é bem igual à tua,
desde o pasto à cocheira e da cocheira à rua.
O que importa é que tu apanhes o sentido:
não quero abandonar nosso Patrão querido;
apenas, nota bem, quero que noutro oficio
ele tenha mais honra e maior beneficio,
e nós.... o mundo é largo, iremos mundo afora .
Um pouco de capim se encontra a qualquer hora,
e isso nos basta.

PATRÃO
Oh Cravo, estás caído em erro
Vagabundar! ... não só o dente de alguém perro
mas um laço traidor vos tolheria o passo.
E vós, amigos meus, uma vez nesse laço,
nas mãos de novo dono... eu nem vos digo a sorte
que teríeis depois... Antes a fria morte!
Então vos lembraria, e com que saudade!...
a vida que levais, melhor que a liberdade...
E quanto a mim, feliz me julgo neste posto;
por vontade entrei nele e nele estou por gosto.

CRAVO
(refletindo)
Então, nova proposta. Aqueles companheiros
que outrora como nós corriam bem ligeiros
levando atrás de si essas coisas rodantes
com que metemos medo aos calmos viandantes,
onde estão? Já me disse um dos nossos arautos
que há uma cocheirinha em cada um dos autos
que comporta (será?) dezenas de cavalos
-Não poderemos nós também acompanhá-los?
Bastava que o Patrão em vez de um carro velho
e de andar a agitar um ensebado relho
quisesse dirigir um auto lindo e novo
assim como requer civilizado povo,
e nós, na cocheirinha em bem aventurança,
sem fome e sem comer e sempre cheia a pança,
porque, para arrumar num meio pequenino
bucéfalos sem conta, houve um poder divino
que os soube transformar.

PATRÃO
(com ironia)
Santíssima inocência!
És mesmo um animal de curta inteligência!
Cavalo ali não há, nem um, de carne e osso,
de patas e cabeça, orelhas e pescoço.
Os cavalos que há ali são dínamos e gazes,
que nem vocês nem eu seríamos capazes
de compreender; porém dão-lhes aquele nome
por serem forças tais que, havendo quem as some
há de achá-las iguais e dez, a vinte, a trinta
cavalos valentões como vocês...

CRAVO
(com despeito e insolência)
Não minta,
senhor Patrão! Se nós tivéssemos tal dote
não tínhamos sentido os mimos do chicote.
E também é por isso...

PATRÃO
(com surpresa e dignidade) 
Olá! Temos revolta?!
Comigo quem está mal por si mesmo se solta.
Eu não quero ninguém forçado em meu serviço.
Pensas que não estás bem, dissesses logo isso.
Nossas contas estão em dia a qualquer hora:
Trabalhaste, comeste. E podes ir embora.
Mas lembro-te, meu Cravo, o que te disse há pouco
dos perigos que corre o vagabundo louco.
Se algum dia sentiste o meu chicote leve
isso não foi doer, foi sensação tão leve
como um puxão de orelha em um menino de escola.
Chicotada que eu dou não mata nem esfola,
é somente um sinal, uma advertência apenas.
Vai ver nos outros, vai! os golpes das chilenas,
nos outros teus irmãos que, em péssimos caminhos,
escarpas a subir e a descer, coitadinhos!
o marmanjo do dono aguentam sobre o lombo...
e bem felizes são quando não levam tombo
ou nalgum tremedal não ficam, por desgraça,
sepultados em vida!

CRAVO
Oh meu Patrão, não faça
mais longa a descrição! Se é verdadeiro isso,
fico no meu lugar, precário ou vitalício,
junto do meu amigo e bom irmão Dourado.
Liberdade?! ilusão!... como eu estava enganado!...

PATRÃO
(triunfante e sentencioso)
Como enganado está quem nunca se contenta
com a sorte que tem. De sonhos se alimenta,
e vive a procurar o bem que não existe,
encarando o real sempre de aspecto triste.
 (com ar bondoso e animado)
Contenta-te, meu Cravo, amigo e companheiro,
com a vida que tens, como esse teu parceiro.
Os costados, vocês os levam sempre à fresca,
apenas um esforço em peiteira arabesca,
mas isso é um brinquedo em rapaziada nova
como vocês.
 (intimativamente e confiante)
Vão lá! Agora mesmo 'a prova!

CRAVO E DOURADO
(em atitude de marchar)
 Pronto, Patrão!
CRAVO
Por mim, a minha língua amarro.

DOURADO
(oferecendo o corpo)
Arreios sobre nós e atrás de nós o carro.
Vamos continuar em paz o nosso oficio
que, afinal, não importa um grande sacrifício,
como outros. E, demais, dele nos vem a glória
de darmos nosso nome às páginas da História.
Continuemos nós, eu e tu, meu amigo,
a representação do Bom Jesus antigo.
Quero uma coisa só: para honra do povo
e glória do Patrão, que seja um carro novo.

CRAVO
E eu também uma só, surgiu-me na cachola:
queremos o Patrão de farda e de cartola!


O CARRO DO ZEBINHO

O carro do Zebinho já foi carro.
Já foi a glória, o orgulho disto aqui,
Hoje, nem roda mais de tanto esbarro:
          Vai indo por aí...

         Lá vai o carro... É tanto sacolejo,
        tal desconjuntamento na corrida,
        que nos deixa a impressão de um caranguejo
cheio de formicida...

Que figura não faz desde manhã 
nestes tempos de tude à la arçonne!
Representa o papel de um gramofone
ao lado de um jazz-band...

    Amo-te, velho carro, e me comovo
    à esperança que tens já nessa idade.
   Esperança igualzinha à do meu povo
para a felicidade.

Queres viver, - campeão da senectude-
Velho, podes, talvez, um Voronoff  
que te aplique a injeção da juventude
           ao menos numa estrofe...

    Quando passas mais torto do que um  S
    acho-te uma expressão quase sublime:
   creio ver-te na moda, e até parece
       que está dançando o shimmy...

Desde manhã que corres e trabalhas, 
descendo à lama, alçando os tropicões
cai aqui, cai ali, guinchas, guizalhas
                  tudo por dez tostões...

    Quando levas alguém para o doutor
    mesmo ao douto esculápio te antecipas:
   os arrancos que dás no sofredor
        curam-lhe o nó nas tripas...

                                  "-Tem cuidado, Josefa. Vai chover"
                                  "-Não vai chover, patroa. A madrugada
                                   nunca esteve tão linda!" - "Pois vais ver:
                                                  escuta: é a trovoada..."

            Que barulho esquisito! E um céu de arminho!
           Nem sinal de tormenta no horizonte...
           E jóc, e jóc... E o carro do Zebinho
  atravessando a ponte...

           "Leva este leite à casa de seu Veiga,
           no carro do Zebinho". E Zé da Matta
lá foi. Quando chegou, abriu a lata:
    - Que leite? Era manteiga...

           A ambição que te anima nem o móvel
         que vibra até na sorte dos países.
         Teu lindo sonho há de deitar raízes:
hás de ser automóvel...

Voltes porém feito automóvel com
outra figura e rodas mais bonitas,
e em vez dos guizos bárbaros que agitas,
buzines um fon-fon,

        Apareças na forma de um Buick,
       ou sob um novo tipo que apareça,
      elegante demais, podre de chie,
herói que resplandeça,

Automóvel que fores, tua lenda
não morrerá contigo no caminho,
E hás de ficar na forma de legenda,
- o carro do Zebinho...
OCTAQUINO


FIM


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