terça-feira, 24 de junho de 2025

Poetas Neossimbolistas Brasileiros: Milton Lima Sousa e Elcio Xavier por Edgard Pereira

 

Edgar Pereira 

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O véu da manhã


Talvez seja o Simbolismo o movimento literário que conseguiu esboçar com maior rigor, ainda que suas formas desdenhem as expressões objetivas, precisas, o seu formulário estético. Ao se referir o termo Simbolismo, entra em cena o modo poético que, com maior veemência, promulgou a identidade entre o sujeito e as formas vagas, imprecisas, etéreas e voláteis. Dentre todas, a mais elaborada, sem dúvida, terá sido a identidade entre a alma e a folha frágil levada pelo vento. Esta convenção tácita atravessa a poesia de seus maiores poetas, Baudelaire, Verlaine, Rimbaud, Mallarmé, Camilo Pessanha, Cruz e Souza, em todos os quadrantes do mundo ocidental. A derrocada da via racional, elevada à categoria máxima de conhecimento na segunda metade do século dezenove, como forma de explicar os fenômenos, em decorrência das novas concepções filosóficas, deslocam o eixo do objeto para o sujeito, pulverizando os métodos positivistas, calcados em pressupostos de certeza e de crença na Razão triunfante. Para Schopenhauer, em O Mundo como vontade e Representação, o conhecimento científico mostra-se insuficiente para dar conta da explicação dos fenômenos, uma vez que “a vontade é força irrefletida e cega que impete o homem para diante. O malogro do homem, portanto, se verifica quando, impulsionado pela vontade, parte para a conquista do mundo, que se lhe revela como mera ilusão – o véu de Maia” (GOMES, 1985, 10). Postula a inutilidade do conhecimento científico, postado sempre no limite de seu objetivo:

Todo querer se origina da necessidade, portanto da carência, do sofrimento. A satisfação lhe põe um termo; mas para cada desejo satisfeito, dez permanecem irrealizados. Além disso, o desejo é duradouro, as exigências se prolongam ao infinito. A satisfação é curta e de medida escassa. O contentamento finito, inclusive, é somente aparente: o desejo, satisfeito, imediatamente dá lugar a um outro; aquele já é uma ilusão conhecida, este ainda não. Satisfação duradoura e permanente objeto algum do desejo pode fornecer; é como uma caridade oferecida a um mendigo, a lhe garantir a vida hoje e prolongar as misérias ao amanhã. Por isto, enquanto nossa consciência é preenchida pela nossa vontade, enquanto submetidos à pressão dos desejos, com sua esperança e temores, enquanto somos sujeitos do querer, não possuiremos bem-estar nem repouso permanente [1].

Como estilo de época, consolidado por inúmeros eventos e produções, o Simbolismo carreia, dentre seus protocolos, um substrato de dor e pessimismo, diante da realidade, dada a incapacidade de alcançar, através do conhecimento, as razões maiores do Universo. A falácia do processo cognitivo prepara um terreno apropriado ao surgimento de outras formas de inserção na busca do desvendamento das coisas. Henri Bergson propõe a via intuitiva como roteiro de apreensão da realidade: enquanto a inteligência cava um fosso entre o sujeito e a realidade, separa o homem da realidade, extirpando desta a espessura de vitalidade, a intuição apreende o objeto como um todo, por se instalar na historicidade dinâmica da existência. Desta forma, enquanto a inteligência timbra em analisar o ser e as coisas através de convenções exteriores e arbitrárias, enquadrados dentro de nexos já existentes, a intuição “pela comunicação que ela estabelecerá entre nós e o restante dos seres vivos, pela dilatação que obterá de nossa consciência, ela nos introduzirá no domínio próprio da vida, que é interpenetração recíproca, criação infinitamente continuada” [2].

Desalentado, descrente dos processos racionalistas, o artista elege a indiferença e a passividade diante da vida, a postura decadente, como forma de reagir à azáfama da sociedade e ao espírito conquistador, patentes como resultado da euforia cientificista do final do século XIX. A opção pela torre de marfim, o traço hermético, o gosto extravagante, o fascínio pelas formas orientais, arcaicas ou míticas instauram-se como etapas da fuga do real, moldando o perfil de um sujeito refinado.

Se o Decadentismo não teve a ‘sombra de uma doutrina’, notabilizando-se mais por constituir um estado de espírito frente ao mundo, o Simbolismo, pelo contrário, configura-se como um movimento em que não faltam teóricos e em que os difusos princípios do Decadentismo tomam corpo, sob a forma, entre outras coisas, de atitude passiva frente à vida e da entrega do poeta ao culto do exótico, da linguagem pura, como fuga do mundo destituído de sentido [3].

A postura neossimbolista retorna de forma veemente por volta dos anos 1940 no âmbito da literatura brasileira, após o auge da renovação modernista, delimitada entre os anos de 1920 a 1940. Entre os anos 1940 a 1960, vigora, dentre outras tendências poéticas, uma corrente fortemente irisada de marcas e tonalidades simbolistas.

Muitos autores de manuais, pesquisadores e historiadores, têm-se mostrado indiferentes, desdenhosos em relação a este contexto. Nas décadas de 40 e 50, surgiram no país dezenas de poetas, muitos dos quais nem sequer foram ainda catalogados nas histórias literárias aparecidas desde então. Talvez tenha sido a época mais produtiva em produção poética no país. O cânone limita-se a registar uma dezena de nomes, entre consagrados e merecedores de atenção, ainda que de circulação mais restrita. Dentre os poetas modernos, talvez pudéssemos, para efeito ordenador, considerar três grandes grupos, entre os anos 1920 e 1955, seguindo tendência da historiografia literária. No primeiro são geralmente reconhecidos os nomes históricos de 22: Cassiano Ricardo, Guilherme de Almeida, Jorge de Lima, Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Menotti del Pichia, Raul Bopp, Ribeiro Couto, Ronald de Carvalho, Oswald de Andrade, Sérgio Milliet. Tais autores granjearam, em parte por conta da relevância do evento de que participaram, sem ignorar a importância da obra produzida, notável e extensa fortuna crítica.

No segundo conjunto, comparecem os nomes consensuais, notadamente os autores de proa surgidos entre 1930 a 1945, como Adalgisa Nery, Augusto Frederico Schmidt, Augusto Meyer, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Emílio Moura, Henriqueta Lisboa, Lúcio Cardoso, Mário Quintana, Murilo Mendes, Vinícius de Morais e Tasso da Silveira. Com raras exceções, quase todos têm recebido o merecido interesse de pesquisadores.

O terceiro grupo, bastante numeroso, recolhe a chamada geração de 45, verdadeiro balaio contendo nomes variados, acima de sessenta (cf. A Literatura no Brasil), dentre os quais merecem destaque – Afonso Félix de Sousa, Afonso Ávila, Alberto da Costa e Silva, Alphonsus de Guimarães Filho, Antônio Rangel Bandeira, Augusto de Campos, Bandeira Tribuzi, Bueno de Rivera, Dantas Mota, Darcy Damasceno, Domingos Carvalho da Silva, Elcio Xavier, Fernando Ferreira de Loanda, Fernando Mendes Vianna, Ferreira Gular, Geir Campos, Hilda Hilst, Jamil Almansur Haddad, João Cabral de Melo Neto, Joaquim Cardozo, José Paulo Moreira da Fonseca, José Paulo Paes, José Santiago Naud, Ledo Ivo, Laís Correa de Araújo, Mauro Mota, Milton Lima Sousa, Paulo Mendes Campos, Péricles Eugênio da Silva Ramos, Renata Palotini, Stela Leonardo, Tiago de Melo. Em 1947, começam a circular duas revistas de poesia, no país: em São Paulo, a Revista Brasileira de Poesia, editada pelo Clube de Poesia, sob a direção de Domingos Carvalho da Silva e Péricles Eugênio da S. Ramos; no Rio de Janeiro, a Orfeu, sob a supervisão de Ledo Ivo, Darcy Damasceno e outros. Da geração de 1950, sobressaem os nomes de Gilberto Mendonça Teles, Lélia Coelho Frota, Mario Chamie, Mário Faustino, Marly de Oliveira, Walmir Ayala. Dos autores elencados, raros têm merecido a atenção de pesquisadores. Com o surgimento da Poesia Concreta, em 1956, Augusto de Campos, Haroldo de Campos, Edgard Braga, Décio Pignatari, passam a receber o interesse da imprensa e de investigadores.

Folheando exemplares de Letras e Artes, suplemento literário dos anos quarenta do jornal carioca A Manhã, vamos nos deparar com notícias e resenhas de livros de poemas de autores, alguns dos quais nunca ouvimos falar. Alguns títulos geram mais de três resenhas, ao longo de dois anos, motivo razoável para que se considerem relevantes. Compor soneto na época não constitui desdouro, pelo contrário, era considerado um ritual de passagem, uma forma de aprendizagem. Se nos damos ao trabalho de acompanhar esses artigos, percebemos tratar-se de autores com lastro de leitura, dotados de senso crítico e densa originalidade, muitos acima da média do que se considera de bom nível de fatura.

Recorto, um tanto aleatoriamente, dois poetas, Milton Lima Sousa (1925-1999) e Élcio Xavier (1920 - ), arrolados no terceiro momento, sobre os quais os manuais de literatura em geral silenciam. O primeiro, Milton Lima Sousa, publicou quatro livros: Abecedário interior (1947), Caos intacto (1952), Ermo de pupila (1955), Ditado no escuro (1967). Encontrei na internet, em páginas de poesia em espanhol, comentários elogiosos ao “poeta desconocido”. Frisos helênicos, versos largos, ecos narcísicos, incursões errantes na esfera dos mitos, formas escavadas no fosso da memória, metáforas radicadas no código bíblico, expressões magoadas do incontornável cotidiano compõem os traços principais de sua produção. O poeta recolhe e dispersa, no seu terceiro livro, Ermo de pupila, alargado rol de metáforas, símiles e epítetos, vincados pelo selo do Simbolismo. No poema inicial, somos surpreendidos pela atmosfera sombria dos versos:

Como limiar de pudor do sentido calcinado

No cerne inefável da lembrança nasce

O tempo eleito para sussurrar de amor.

Nele verto minha taciturna cicatriz.


Até onde a luz tem seu pátio de invulnerável

Intimidade. Entre raízes meu corpo emparedado ficou

Quando com aleluias trinquei

Meus espelhos bifrontais.

Do requiem do sangue saiu a deusa de borralho

Que me persegue e me percorre,

Enquanto o retorcido beijo é relâmpago

De ardor, fábula interrompida.

O poeta escolhe conviver com sua lúgubre irmandade – recantos de cemitério, corvos, visões noturnas, estrela cadente, mortalhas - sem conseguir livrar-se de fantasmas expectantes, repassando situações inóspitas, através de confidências, em geral de fortes conotações góticas, em que atribui forte primazia ao elemento visual, como no poema expressivamente intitulado “Visão”: “Colado a um céu de prece vinculada/ À dor de pedra tumular, latejando em queixume/ Maior que resíduo de estrela ou nicho de pó,/ Com incisivo amor e orla de escárnio,/ Diante de muros assombrados meu clarão eu conjugava”. (…) O resíduo/ Tangível de luar escrevia amargura em minhas veias,/ Ora transformando-se em retina de indevassável/ Espera, ora em face de cruel lassidão./ Mas caminhar assim era possuir elmo de cristal/ E colete de orlas murmurantes/ Onde cabiam medalhas, palavras e corvos irmãos.” Nomeando-se a si mesmo “errata de sonho”, o poeta transita, inconsolável, num interlúdio de sonhos usurpados, numa cidade inóspita, gerando epítetos que melhor se ajustem à sua figura e ofício:

O poeta define-se como um ser marcado pela fatalidade, misto de verbo e destemor, guardião de tesouros indeléveis, um humilde aprendiz de ritos e sortilégios benfazejos, convicto de que se sente guiado por forças altíssimas e luminosas:

Ilumina com círios azulados

a estrada por onde Ele caminhará

e convoca todos os sons doces da vida

para saudá-Lo no dia da luz.

(“Grande Infância”)


Elcio Xavier publicou ainda Rosaquarium (1952), do qual se transcreve o poema “Dualidade”, denso de ressonâncias e sugestões:

Fizeram-me argila e flor

e com perfume alimentei o mar:

vaso puro e rosaquarium

entre licores e a manhã

sou eterna essência e morro,

e realizo tardes sem sofrer.

A argila é fria

e sonha. A rosa é alma e vive.

deu-me por nome Eternidade.

(“Nasci das sílabas”)

O poeta define-se como um ser marcado pela fatalidade, misto de verbo e destemor, guardião de tesouros indeléveis, um humilde aprendiz de ritos e sortilégios benfazejos, convicto de que se sente guiado por forças altíssimas e luminosas:

Ilumina com círios azulados

a estrada por onde Ele caminhará

e convoca todos os sons doces da vida

para saudá-Lo no dia da luz.

(“Grande Infância”)

Elcio Xavier publicou ainda Rosaquarium (1952), do qual se transcreve o poema “Dualidade”, denso de ressonâncias e sugestões:

Fizeram-me argila e flor

e com perfume alimentei o mar:

vaso puro e rosaquarium

entre licores e a manhã

sou eterna essência e morro,

e realizo tardes sem sofrer.

A argila é fria e sonha. A rosa é alma e vive.

não mais voavam.



[1]SCHOPENHAUER,1974, 32.

[2]BERGSON, 1979, 160.

[3]GOMES, 1985, 13.

[4]MILLIET, 1981, 125.


Bibliografia


BERGSON, Henri. A Evolução Criadora. Trad. brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

COUTINHO, Afrânio. A Literatura no Brasil. São Paulo: Global, 2004.

GOMES, Álvaro Cardoso. A Estética Simbolista. São Paulo: Cultrix, 1985.

Letras e artes. Acesso em 20 de março de 2021.

MILLIET, Sérgio. Diário crítico. São Paulo: Martins Edusps, 1981. Vol. V.

SCHOPENHAUER, Arthur. Trad. brasileira. O Mundo Como Vontade e Representação. São Paulo, Abril, 1974.

SOUSA, Milton de Lima. Êrmo de pupila. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1955.

XAVIER, Élcio. O Véu da Manhã. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti, 1951.

(Atualizado: 10 de nov. de 2021)

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