Norberto Seródio Boechat |
Há 43 anos, a foto da menina Kim Phuc, flagrada nua pelo
fotógrafo Hunk Cong Ut, fugindo do ataque napalm, no Vietnan, mostrando indescritível
horror na fisionomia escandalizou o mundo. Foi um momento de conscientização
universal.
E neste ano, em setembro, a foto do menino Aylan, de três
anos, encontrado morto numa praia turca estarreceu o mundo. A cena, chocante,
abalou. O homem deve ter reformulado conceitos, juízos, horrorizado com o
inaceitável absurdo dos conflitos no Levante.
Em sua curta vida em Kobani, na Síria, o garoto e o irmão
assustaram-se inúmeras vezes com o barulho de bombas e visão de labaredas e
fumaça. É provável que em seus três aninhos, quando os impulsos são dirigidos
aos mais profundos afagos do amor e às brincadeiras infantis, não tenha
compreendido porque sua cidade era modificada a cada dia, por que ouvia gritos
à noite? E, mais dramático, o que terá sentido no pequeno barco, junto ao irmão
Galip no colo dos pais, Abdullahe Rehanna, tentando desesperadamente permanecer
juntos na inquietação do frágil bote? De repente, soltou-see mergulhou o
mergulho da inocência no mar histórico.
Aylan é uma tentacular vítima, não só da guerra civil em sua
pátria, mas da complexidade de seus vizinhos, acossados por embates étnicos,
políticos e econômicos. A família Assad, que governa seu país há décadas,− ejá
teve filhos iguais a ele− , somente elaé responsável pela morte de mais de 270
mil pessoas.
Destino pré-concebido por jogo de poder entre vizinhos e
outras potências mundiais, num tabuleiro de incongruências:
A Arábia Saudita, suavizinha,
é aliada dos EUA no Oriente Médio. Predominantemente sunita. Sede de grandes
centros de peregrinação religiosa, em Meca e Medina, paradoxalmente abriga
importantes escolas ultraortodoxas do islamismo como o WAHABISMO, doutrina
fundamentalista. Concorda com os EUA e aliados nos ataques aéreos à Síria e no
Iraque,vizinho, contra o Estado
Islâmico (EI).
Os EUA querem a renúncia de Bashar al-Assad, o ditador
sírio, mas este, de família ALAUITA, (sub grupo xiita), tem apoio da Rússia que
bombardeia posições rebeldes a Assad, argumentando, também,visar o EI. Aylan
não cresceu para entender para entender posições antagônicas descarregando
bombas sobre seu país.
Vladimir Putin, da Rússia, quer um papel relevante no
Oriente Médio e, por isso, está ao lado de Assad, fornecendo armas.
Turquia, vizinha,
de maioria sunita, apoia a coalizão liderada pelos EUA e as forças rebeldes
sírias. Permite que os EUA usem bases aéreas em seu território.
Noutro sentido, negociações sobre programas nucleares entre
EUA e Irã causaram mal-estar entre os
principais aliados dos americanos na região: Israel, vizinho, e Arábia Saudita.
Os fatos recentes mostraram que não se concretizaram os
propósitos democráticos da “primavera árabe”. O que se viu foi o desmoronar de
países do Oriente Médio, estabelecidos há décadas, como Iraque, Afeganistão,
Líbia e sua Síria, além de outros sob ameaça, tais comoIêmen, Jordânia,
Turquia, Arábia Saudita. O garoto Aylan certamente cresceria sem compreender a
razão do envolvimento de tantas e tão desconcertantes forças, impedindo-o de
vislumbrar horizontes através suas fronteiras.
Maomé. Sunitas.
Xiitas.
A absoluta maioria muçulmana é pacífica e ordeira frente a
uma minoria de fanáticos que se lança ao terror em nome do Alcorão. No entanto,
este não convida os crentes a matar, mas sim ao respeito e o bem entre os
homens. A história do islamismo ou islã começou numa caverna na Arábia. (Uma
outra, foi em manjedoura). Segundo a tradição, o arcanjo Gabriel (o mesmo que
revelou a Isabel) apareceu a Maomé e o orientou a falar sobre princípios
divinos. Isso teria ocorrido por volta de 610 d.C. Maomé nasceu em Meca,
provavelmente em 570 d.C. Seus escritos deram origem ao Alcorão, o livro
sagrado dos muçulmanos. Após sua morte, houve disputa quanto à sucessão, quando
duas correntes se tornaram majoritárias, os xiitas e os sunitas. Os xiitas, formados
pelos seguidores de Ali, primo e genro de Maomé. Os sunitas, mais numerosos e
mais radicais, acreditavam que o profeta não deixara herdeiros legítimos.
Maomé, por certo, jamais imaginou que seus ensinamentos
poderiam redundar em lutas e, muito menos que em seu nome um grupo terrorista
colocasse o mundo ocidental em alerta máximo.
O Estado Islâmico surgiu da rivalidade entre muçulmanos
xiitas e sunitas. Sem importante significado bélico, no entanto, em pouco tempo
evoluiu para uma ameaça global, conquistando um território do tamanho da
Itália. Em sua formação, há um personagem, o terrorista jordaniano Abu Musab
al-Zarqawi que, ligado a ex-funcionários da ditadura de Saddam Hussein, deu os
primeiros passos para sua formação. Foi morto em 2006 por ataques aéreos
americanos. A partir de 2011, a guerra civil na Síria deixou um vácuo de poder
em muitas áreas do país. Os integrantes do EI, sob novo líder, Abu Bakr al-Baghdadi,
aproveitaram esse momento, cruzaram a fronteiram e ocuparam espaço. Bashar
al-Assad, ditador sírio, foi conivente e ignorou a invasão, contando com o
grupo para lutar contra os rebeldes que tentam derrubá-lo. O EI estabeleceu,
assim, sua sede em Raqqa, na Síria. Em seguida, 2014, invadiu as cidades ao
norte do Iraque, criando um governo baseado na charia, a lei islâmica. Enquanto
isso, Aylan e Galip cresciam. O ambiente
de caos foi propício ao EI. Acresce-se que ele projeta calcadas esperanças aos
muçulmanos: defesa dos sunitas, sobretudo no Iraque onde eram opressores, e
agora oprimidos pela maioria xiita nesse país; a promessa de formação de um Estado
de fato nos territórios ocupados; o questionamento de partilhas territoriais em
1920, quando da derrocada do Império Otomano; e, finalmente, a grande busca de
reconhecimento internacional por sua identidade. Dessa maneira, a perspectiva de
alcançar taispropósitos torna o EI simpático a milhões de muçulmanos em todo o
mundo. Na verdade, trata-se de um processo de grande arcabouço histórico e
cultural, provavelmente de difícil resposta a soluções armadas.
Convivemos, então, impotentes com uma luta pluralizada, de
complexos objetivos, levando por calcinar ainda mais a terra árida, um dos berços
da civilização. E o combustível é volátil, já queentranhado
no “patriotismo” de “estados” os mais diversos, tribos, seitas, etnias,
crenças. Aylan, nesse meio, igual a Kim Phuc foi um gigante. Virou símbolo da
crise migratória. Em imagem entre areia e mar, seu pequenino corpo sobrepujou a
imprensa universal que, antes, jamais conseguiu mostrar de maneira tão clara o
cinzento horror da paisagem, contrastando com sua camisinha vermelha.
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