sábado, 9 de agosto de 2025

A ÚLTIMA ONÇA

 


De primeiro, o povo já dizia: “Matar um leão por dia é fácil, difícil mesmo é conviver com o amigo da onça.” Pois eu vou lhes contar uma história que meu pai me contou várias vezes e percebi que outras pessoas também contam e recontam o mesmo fato, sendo um causo que atravessa gerações aqui na região de Varre-Sai.

 Aconteceu lá pras bandas da Fazenda da Onça dos Coimbra, terra alta, de morro espichado e mata fechada, aqui no noroeste fluminense. O nome já dizia tudo: sempre tinha um causo com onça naquela região. Mas naquele tempo, começo do século XX, coisa de 1930, o Brasil vivia tempos agitados: falavam de revolução, fim da República do Café com Leite, começo da Era Vargas. Aqui, no entanto, o assunto era outro: bicho brabo rondando quintal, e jagunço na beira da estrada.

Pois bem, nessa época apareceu uma onça pintada, daquelas grandes, com as pintas escuras brilhando ao sol, e começou a fazer estrago. Atacou bezerro, matou cachorro de fazendeiro, e até gente teve que se esconder pra não virar almoço. O povo dizia que era a última onça dessas terras, herdeira de um tempo em que a mata mandava mais que o homem.

Seu Lolói Ramos, dono da fazenda, não era homem de se amedrontar fácil, mas com a onça rondando tão perto, viu que o perigo não era conversa fiada. Chamou Manoel, meeiro da fazenda, homem de confiança, bom de mira e de coragem. Os dois se entenderam sem muita fala: era preciso acabar com a fera antes que ela acabasse com eles.

As armas eram as que se tinha: espingardas de pederneira, que ainda ecoavam nos ombros dos caçadores daquela época. Não eram novas, mas quem sabe usar, sabe fazer valer. Amanheceu e eles se meteram na mata, a terra coberta de folhas secas e o cheiro de terra molhada subindo do chão.

Caminharam por horas. O mato fechava o caminho, cipó agarrava na roupa, e o canto dos passarinhos ia diminuindo conforme avançavam. É sempre assim: quando a mata silencia, é porque tem coisa grande por perto. E mais ou menos na metade de um morro que a surpresa veio.

A onça apareceu de repente, como que brotada do capim. Olhos amarelos faiscando, dentes à mostra, o corpo pronto pro bote. Manoel não pensou duas vezes: levantou a espingarda e atirou. O estampido ecoou pelo vale e a onça despencou no chão. Mas o destino, meus amigos, gosta de fazer suas traquinagens.

No mesmo instante do tiro, Manoel sentiu a fisgada ardida na perna: uma cobra, das brabas, se aproveitou da distração e cravou-lhe as presas. Manoel caiu de costas, largando a arma, e ainda teve fôlego pra gritar: — Morro, mas te mato, maldita!

O barulho atraiu a vizinhança. Seu Lolói berrava por socorro, e o povo veio correndo, subindo o morro como quem corre pra apagar incêndio. Quando chegaram, foi um reboliço: um cuidava da onça caída, outro tentava socorrer Manoel. Amarraram um torniquete na coxa dele pra segurar o veneno, enquanto discutiam que tipo de cobra poderia ser.

E aí, como todo acontecimento grande, apareceu um fotógrafo. Ninguém sabe de onde veio. Uns dizem que passava pela estrada, outros que morava numa cidadezinha próxima. O fato é que ele armou o tripé e disse: “Vamos registrar a história!” A onça, já sem vida, foi escorada num girau de madeira, como se estivesse de pé, pronta pra mais uma briga. Em volta dela, os cabras da fazenda, alguns com as espingardas na mão, outros com o chapéu na testa e aquele ar de quem tinha enfrentado a fera.

A foto ficou famosa por essas bandas, batizada de A Caçada da Onça e atualmente circula nas redes sociais. O retrato mostra o orgulho de quem acreditava que tinha vencido a mata. Mas o que não se esqueceu foi o desfecho triste: Manoel, mesmo com todo o esforço, não resistiu ao veneno. Diziam que a cobra era cascavel, outros garantiam que era jararaca das grandes. E sempre tinha um que cochichava: “Era amiga da onça.”

E assim terminou a história da última onça que rondou a Fazenda da Onça dos Coimbra. O bicho se foi, o homem também, e o mato continuou lá, guardando seus segredos, como sempre, até ser desmatado para dar lugar a um cafezal bonito de dar gosto.

(Isabel Menezes, professora e historiadora)

FOTO: A Saga dos Ladeira Martins, pág. 50

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