quinta-feira, 2 de abril de 2020

Em dia de aniversário da nossa cidade...

"A Ponta Delgada: aldeia, vila e cidade

Quando descoberta a ilha de São Miguel, no arquipélago dos Açores, encontrava-se revestida por uma cobertura de árvores altas e arbustos assim como um intenso matagal. Deparados com um cenário de natureza indomada, os povoadores portugueses de quatrocentos e de quinhentos, tiveram de transformá-lo e preparar o seu novo habitat. Assim, só podemos imaginar as localidades micaelenses nos seus primórdios, cobertas de densa vegetação e de muito arvoredo, como o loureiro, a faia, o cedro e o tamujo:

“Esta ilha de São Miguel em que, Senhora, estamos é montuosa e regada de ribeiras, e era logo, quando se achou, coberta de arvoredo, graciosa em sua situação e, por ser húmida com as águas das chuvas e ribeiras e quente do sol, criou tantos e tão espessos arvoredos que com sua sombra conservavam nela esta humidade sempre fresca e durável, com que ela ficou e estava no princípio tão fumosa de tão grossos vapores, sem ter o sol força para os gastar nem penetrar com seus raios, nem os ventos livre entrada para os lançar daqueles lugares sombrios da espessura do arvoredo (…) Mas, o que em longíssimos e antiquíssimos anos foi criado, em tão poucos se queimou, roçou e consumiu quase tudo depois de achada (…).” (FRUTUOSO, 1981: 140)

Para a exploração da terra recorreu-se aos métodos de roçagem e enfogueiramento que, usados em simultâneo, possibilitaram o nascimento das primeiras clareiras. Segundo Raquel Soeiro de Brito, o homem transformou a vegetação que encontrou, abrindo largas clareiras nas antigas florestas e introduziu muitas plantas que se propagaram rapidamente. O desbravar dos terrenos seria uma das primeiras preocupações para garantir a subsistência. Teve lugar também a procura do bem essencial a todos os seres vivos: a água. Procedeu-se à criação de animais, para alimento ou meio de deslocação, assim como a utilização da madeira para a construção de habitações, meios de transporte, utensílios agrícolas, apetrechos domésticos e como fonte energética.
O sistema de divisão e posse da terra, baseado nas chamadas “dadas” ou “sesmarias”, atribuídas pelo Capitão do Donatário, onde o dono da terra tinha a obrigação de construir “cafua” e “curral”, roçar o terreno, efectuar benfeitorias e estabelecer acessos para uso comum, pretendia promover a fixação de núcleos familiares. O cargo de Capitão do Donatário foi criado em função destes não residirem na ilha de São Miguel e possuía diversos poderes (senhoriais, fiscais, judiciais), entre os quais a atribuição das dadas.
A estrutura fundiária cristalizou muito cedo, em grande parte devido à vinculação dos bens, ainda na primeira metade do século XVI, restringindo o homem comum ao contrato de locação das terras ou ao trabalho a soldo do proprietário. Os pequenos aglomerados ergueram-se consoante a morfologia permitiu, alcançando na íntegra, a orla costeira micaelense.
O “sítio” de Ponta Delgada na era de quinhentos apresentava-se primitivamente coberto de mato, constituindo um “solitário ermo”, que fazia as delícias dos nobres vila-franquenses ao proporcionar-lhes longas caçadas. Posteriormente passou de “modesto lugar” a “pequena aldeia”, depois foi vila em 1499 e por último foi elevada a cidade em 1546. Adquiriu território, população e produção, alcançando aproximadamente o terço da ilha em meados do seculo XVI:

“Alguns anos depois do descobrimento e povoação desta ilha, era vila somente Vila Franca do Campo e a cabeça de toda ela, sem haver outra, senão alguns lugares, como suas aldeias, em que havia juízes pedâneos e alcaides, e seus moradores eram obrigados a ir a ela todos os dias de festa principais, em que havia procissões solenes. E, como no lugar da Ponta Delgada moravam homens nobres e poderosos, onde tinham grossas fazendas e herdades de boas terras, que os Capitães desta ilha lhes deram, sendo ricos e prósperos, não estavam muito contentes por os obrigarem a ir a Vila Franca muitas vezes, em diversos sucessos; alguns dos quais, a que pude saber os nomes, eram Nuno Gonçalves Botelho; Fernão Gonçalves, o Matoso; Rui Lopes da Silva; Pero de Teves; Fernão do Quental; Francisco Dias Caiado; João da Castanheira; Pero Jorge; João Gonçalves, o Tangedor; Álvaro Pires, procurador; João Alvres do Olho; Fernão de Lima e outros mais; - todos os quais, indo a Vila Franca pelas festas em que eram obrigados, foram uma (dizem ser dia do Corpo de Deus) em que deram uma tocha, para levar na procissão, a Pero Jorge, pai de Hierónimo Jorge, e pondo-se um Antão Pacheco, pai de Pero Pacheco, de Vila Franca, detrás dele com outra tocha, com ela, ou por descuido ou por malícia ou zombando, lhe pingou um tabardo novo, que ele levava vestido, como então se costumava (outros dizem que era um capuz cerrado, de punho preto fino); e olhando o Pero Jorge para trás, vendo-se pingado, levando o capuz por cima da cabeça, arrancou logo sua espada contra quem lho pingara, com que se armou um grande arruído, ajuntando-se, como em bandos de parte a parte, muita gente, onde houve alguns feridos e se desordenou a procissão. Pero Jorge e os da Ponta Delgada que eram da sua parte, por carregarem todos os de Vila Franca sobre eles, tiveram trabalho, indo-se recolhendo até ao porto, onde se recolheram em três barcos em que haviam ido; e chegados neles à sua freguesia se amotinaram e ajuntaram todos os moradores do lugar da Ponta Delgada, e se ajustaram antre si de não obedecer a Vila Franca e procurar fazer a Ponta Delgada vila, para o qual, fazendo sua petição, mandaram logo ao Reino, secretamente, a Fernão Jorge, ainda solteiro, irmão de Pero Jorge, ambos filhos de Jorge Velho e de Africanes, uns dizem por via da Terceira, onde foi buscar embarcação, outros afirmam que desta ilha direito ao Regno, em uma caravela carregada de cevada, com pretexto de a ir vender a Lisboa. De qualquer modo que seja, ele foi dissimuladamente, sem se saber ao que ia, por terem jurado todos os deste acordo o terem em segredo até serem providos, porque, além dos de Vila-Franca serem contra isso, também o era o corregedor, chamado Macarote que então nesta ilha residia com alçada. (…) sabido pelos moradores da Vila-Franca, com muita pressa puseram embargos a ser Ponta Delgada vila, diante de Pero Roiz da Câmara, o qual lhes respondeu não sabia que lhes fizesse, porque os da Ponta Delgada andavam com suas varas alevantadas e já lhes não podia valer. Dali por diante, sempre tiveram diferenças os da Ponta Delgada com os de Vila-Franca, como os da Alagoa com Água do Pau, em tanta maneira que uma vez foram os da Ponta Delgada pôr uma bandeira junto de Vila-Franca, com armas, tambor e mantimento; até os moços de ambas estas vilas antre si, quando se encontravam, tinham crua guerra. Rompendo-se depois o primeiro alvará de vila, que trouxe Fernão Jorge, por ser passado em papel, mandou o mesmo Rei D. Manuel passar outro em pergaminho, feito na vila de Abrantes, onde então estava, aos vinte e oito dias de Maio da era de mil e quinhentos e sete (…) com que alargou e fez seu limite além da Relva, Feiteiras, Mosteiros, Santo António e Fanais, e depois acrescentou a Candelária, S. Sebastião e Bretanha, os quais lugares pelo tempo em diante se fizeram e são sufraganhos à mesma vila da Ponta Delgada, que el-Rei D. João III, do nome, fez cidade, de seu motu próprio, a dois dias do mês de Abril da era de mil e quinhentos e quarenta e seis (…). Com a qual nova começaram os moradores da cidade negociar dali por diante a cavalo, em que pareciam bem pelas ruas e praças, e se fizeram muitas festas, agradecendo a el-Rei a mercê que lhes fizera.”. (FRUTUOSO, 1981: 168)

Em contrapartida salientava-se a floresta entre os aglomerados, preenchendo o panorama natural e circunscrevendo o território, que Rui Almeida designa como “ermo”. Cabia-lhe delimitar os núcleos habitacionais e preservar a “reserva florestal”. Este manto verde era caracterizado como aposento do mágico e do fantástico, dos animais selvagens, dos refugiados, marginais e eremitas, que no silêncio procuravam a elevação do espírito.
Surgem nos finais do século XV e inícios do século XVI modestas vias que permitiam a comunicação entre as áreas mais distantes e os aglomerados, conforme as necessidades de transporte de pessoas, animais e bens. Nas centúrias seguintes, a estrutura viária aumentou: surgiram novos e melhores acessos, acompanhando as novas fixações.
As dinâmicas territoriais estavam centradas na cidade de Ponta Delgada, que se estende quer ao longo da costa, quer para norte a partir do eixo entre a área central da cidade e o recolhimento de Sant’Ana.
A intensa obra de povoamento e o comércio crescente justificaram que em meados de quinhentos Ponta Delgada, o principal porto marítimo e mais populoso núcleo humano, adquirisse o estatuto de cidade tendo como termo concelhio todo o território ocidental da ilha.

In “Arrifes: Detentores de Património Cultural?” de 2019.

Este texto não segue o novo acordo ortográfico da Língua Portuguesa.

Enviado por Antônio Soares Borges

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