terça-feira, 2 de setembro de 2025

Quando a Infância Reza em Mim

                                        Por Gino Martins Borges Bastos 



A contemplação da beleza sempre conduz à elevação espiritual. Ela nos devolve a nós mesmos, promove a interiorização do eu e nos aproxima do sentido mais profundo da vida.

Contemplo meu passado infantil, guardado em pureza que jamais se apagou. Contemplo os cafés da manhã ao lado de meus pais, Luciano e Leny, e de minha avó Vivaldina. Ao sair, apressado, gritava em voz clara: “Bença mãe, bença pai, bença vó!”, e naquele instante a bênção se fazia escudo e poesia.

Contemplo os rostos ternos de meus tios Bada, Claudi e Rui. Contemplo meus avós: Chiquinho, que me ensinava a brincar com os dedos na mesa, e Niniu, que adoçava a vida com suas balas de coco. Contemplo a foto de meu avô Olívio Bastos, que nunca conheci, e também da de meus bisavós Segisnando Pinto Martins e Mariana Duarte Martins. Contemplo a presença luminosa de meu tio Claudinier, artista e intelectual. Contemplo a tia Nini, a tia Odete e seu esposo Luiz Baldan, que chegava de botas cheirando a gado, trazendo balas da Koppenhauer, queijo de casca vermelha e piadinhas alegres. Contemplo o carinho de Rodoval e Mariquinha, de tio Noca e tia Olga, que me acolheram em Niterói como filho. Contemplo tio Liá, Elza, Missinha. Contemplo tio Djalma, farmacêutico na Barra do Pirapetinga, e Peinha. Contemplo meu tio Ésio Bastos, à frente da Gráfica Gutemberg e do jornal O Norte Fluminense, tia Célia, tia Maria Ruth, José Guerra. Contemplo Maria Alexandrina, Dr. Rui, Maria Célia, e os tios Ernesto - o Doto - Ercília e Luizinho.

Contemplo os bancos escolares do Colégio Rio Branco: a professora Clarice, dona Carmita, seu Heliton, Chico, Vera, Judith Arantes, Maria Apparecida Dutra, meu próprio pai, a professora de piano Regina, dona Nina e Elcio Xavier. Contemplo o velho Eurico, negro sábio que, com sua bengala, apontava os frutos do pé de abil no quintal da casa de minha avó. Contemplo Luiza, que cuidou de minha mãe desde o nascimento e depois também cuidou de mim. Contemplo ainda uma cena de infância: quando, sem meus pais saberem, peguei um cobertor e o levei para cobrir um homem que dormia sobre a calçada fria.

Contemplo as balebas, os coquinhos coloridos que disputávamos no buraco, as tampinhas, as figurinhas perdidas no jogo do bafo, a coleção de selos, as pipas que dançavam no céu, as bancas de revistas e as emocionantes aventuras em quadrinhos, trocadas com coleguinhas. Contemplo os discos de vinil na eletrola tocando baladas que encantaram meu coração.

Contemplo o padre Francisco Apoliano, conversando com meu pai na igreja e segurando carinhosamente minha mão. Contemplo o silêncio de um jogo de xadrez, peças imóveis, relógio em tic-tac, jogadores concentrados. Contemplo o sorriso de uma criança, o nascer e o pôr do sol. Contemplo cachorrinhos e gatinhos em suas estripulias. Contemplo a plantinha que brota no concreto, a chuva que cai e o cheiro da terra molhada. Contemplo montanhas, vales e mares. Contemplo o vento no horizonte. Contemplo os distritos de Bom Jesus e o rio Itabapoana.

Contemplo Museus e Antiquários, os prédios históricos de Bom Jesus do Itabapoana e dos locais onde passo, as fotos da extinta estação ferroviária Itabapoana, assim como as peças e os móveis antigos que ainda guardam ecos de glórias. Contemplo a imagem do extinto Palacete de Malvino Rangel e sinto que ele pode renascer como símbolo do apreço ao belo, à história e à cultura. Contemplo jornalistas, escritores e poetas. Contemplo os que têm histórias para contar, os que lutam pelo que acreditam, mesmo contra a maioria. Contemplo os que se unem por ideais que nascem do coração, a união entre os povos. Contemplo os que acreditam no poder transformador da cultura, os que resgatam a memória e celebram heróis como faróis, iluminando o futuro de uma sociedade culta e humanizada.

Contemplo o idoso e a idosa, que desfilam sabedoria em passos lentos e olhares em prece. Contemplo o piano e o pianista, o músico e seu instrumento, a orquestra e seus maestros. Contemplo o livro, a biblioteca, a livraria e o sebo. Contemplo o jovem estudioso e idealista, o adulto sábio que irradia dignidade. 

Contemplo o lar harmonioso, onde a autoridade se veste de amor. Contemplo a fé estampada em joelhos dobrados. Contemplo o gesto de acolher o desamparado e a luta por justiça. Contemplo a simplicidade que floresce no meio da aspereza humana. Contemplo a beleza feminina, força generosa e sensível, que gera o novo e dá à luz a sociedade por vir.

Contemplo o açoriano Padre Antônio Francisco de Mello, que, em sua ternura, contemplou as crianças e lhes dedicou um soneto eterno.

E, por fim, contemplo o sepulcrário. Diante da sepultura de meus pais, os olhos se enchem de lágrimas e os lábios balbuciam agradecimentos sinceros. Volto a elevar o olhar para Deus, bendizendo a graça extraordinária de tê-los em minha vida. Antes de partir, inclino-me mais uma vez diante deles e renovo o compromisso de honrá-los até o fim.

E me despeço, como quando menino:

“Bença pai, bença mãe, bença vó!”



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