segunda-feira, 3 de abril de 2017

Isso Acontece




Desembargador Antonio Izaias da Costa Abreu


              No dia 9 de janeiro do corrente ano, ao abrir o jornal "O Globo" como costumeiramente faço, na página que noticia os obituários, missas, descoberta da matzeivá e outros atos concernentes à morte e homenagens purificadoras da alma, fui surpreendido com a infausta nota do passamento de um amigo, sócio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro - IHGB, José Murilo de Carvalho.
                    O fato entristeceu-me sobremodo e logo pensei em apurar sua veracidade. Não dispunha, no momento do telefone do amigo e, ainda que o tivesse, naquela circunstância de pouco adiantaria. Acreditando estar o IHGB em recesso, os seguranças e outros servidores da instituição não teriam, certamente, condições de esclarecer o desditoso e inevitável acontecimento, cuja força nos domina deixando na sua voragem um rastro de saudade do ente querido que se partiu.
                     Decidi, então, sem mais indagar, ir ao cemitério São Francisco Xavier, no Caju, para prestar ao amigo e companheiro do IHGB a minha sentida homenagem.
                         Assim, dentro de um terno escuro e gravata própria para ocasiões lutuosas, às 13 horas, com o sol a pino e temperatura a 402 e sensação térmica de 502, desloquei-me para o referido "Campo Santo" e, em lá chegando, fui informado de que o corpo estava sendo velado na capela G, no andar superior.
                         Após galgar cansativa escada, com corrimão bem baixo, que nem os jovens fazem num só fôlego, depois de um longo suspiro devido ao cansaço, procurei refazer-me.
Sucede que, ao dar entrada no recinto, surpreendeu-me ali a ausência de sócios do IHGB bem assim como de membros da Academia Brasileira de Letras ABL, instituições a que José Murilo de Carvalho faz parte. Dirigi-me diretamente a uma senhora e um rapaz, que vim a saber ser esposa e filho do falecido, os quais se mostravam sentidos juntos à essa e os cumprimentei apresentando-lhes as condolências. Nesse momento, de soslaio, espichei o olhar para o morto, e constatei ser uma pessoa totalmente calva, rosto fino, nariz ligeiramente aduncado e a boca emoldurada por um vasto e branco bigode à moda mexicana.
                        Duvidoso, pensei comigo mesmo: Este não parece ser o meu amigo. Será que ele adoeceu e, em um curto período, teve sua fisionomia transformada? Tudo era possível. Contudo, o que continuava a me deixar aturdido era, confesso, o vasto bigode branco do morto. Com andar cauteloso, assentei-me, a seguir, em uma das cadeiras posicionadas à frente do catafalco.
                   Ao notar uma jovem que havia também cumprimentado os familiares do defunto, fiz sinalização para que ela se assentasse ao meu lado. Atendido, perguntei-lhe se o falecido era realmente José Murilo de Carvalho e, mais uma vez, tive a confirmação. Mas o grande e branco bigode continuava sendo, na verdade, o gerador da incerteza, porquanto José Murilo de Carvalho, o grande amigo, não se ornava à fisionomia como se achava o morto. Ademais, o colega do instituto, embora também calvo, tem a face arredondada com linhas leves e delicadas, mas próprias da masculinidade, ressalte-se.
                    Enfim, fiquei a meditar como sair daquela situação emblemática. Nesse instante, dá entrada no recinto, para realizar as exéquias, uma senhora paramentada com um jaleco branco tendo em uma das mãos o hissope e, na outra, diversos folhetos sinalizadores do procedimento, conforme me foi dado a observar ao receber um deles. Era a ministra da eucaristia que ali se fazia presente a fim de dar curso à sua missão. Ao ver-me com traje escuro de mim se aproximou indagando: "O senhor é o padre?" respondi-lhe que sentir-me-ia honrado se o fosse. Não sendo eu o sacerdote, pode a interpelante dar, portanto, início ao seu mister.
                         Orou em voz alta e todos repetiam as santas orações e, de vez em quando, ela espargia água benta sobre o defunto. A cerimônia teve seu término cerca de vinte minutos após com a oração de São Francisco de Assis e fazendo os presentes, em seguida, a perseguinação.
                   Havendo-me comportado como conhecido do morto, os presentes, creio, devem haver indagado entre eles quem seria o senhor de terno escuro que prestou ao falecido a última homenagem? Possivelmente um representante do governo ou membro do Itamaraty.
                       Ao deixar o recinto, a minha dúvida foi dissipada quando um senhor de idade provecta levantou-se da cadeira e deu-me um forte abraço dizendo-me: Doutor, eu e o José Murillo de Carvalho fomos, no final da década de 1960, os designados para instalar a embaixada do Brasil em Moscou, na União Soviética, e lá trabalhamos juntos vários anos. Foi, realmente, quando certifiquei-me que o meu amigo era outro José Murilo de Carvalho.
No dia seguinte, liguei para o IHGB e relatei o acontecido à diligente e estimada funcionária Tupiara e ela, cheia de risos, disse-me: Desembargador, eu também levei um susto ao me deparar com a notícia mas, ao analisá-la, pude logo constatar não ser o anunciado o nosso considerado sócio, apesar da homonímia. Porquanto, o nosso Murilo não é grafado com dois "II", e a sua idade é bem inferior a noventa anos como daquele a quem o senhor prestou a última e sentida homenagem. Disse-me, finalmente, Tupiara: Desembargador, não fique constrangido, pois na manhã de ontem o telefone tocou ininterruptamente, pois inúmeros sócios desejavam ser informados quando e onde ocorreria o sepultamento. Realmente, sim, prestei a um digno honrado embaixador justa e merecida homenagem mas, outrossim, fiquei feliz em saber que o nosso José Murilo de Carvalho encontra-se sadio e em plena atividade.
                        De fato, não raramente, isso acontece.


Date: Mon, 30 Jan 2017 11:32:58 -0200
Subject: jose murillo de carvalho

Caro desembargador,

Só hoje consegui com o Arno seu endereço para responder a carta que me enviou. Lamento o transtorno que meu xará lhe deu, mas, sobretudo, agradeço sua disposição de enfrentar o calor do Rio para comparecer ao velório que achava ser deste seu confrade. Desde já dispenso-o de ir ao S. João Batista quando chegar a vez do José Murilo com um I só... Um cordial abraço, jm.

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