Por Paulo Cruz
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Não se conhece a imagem de Dandara, mas, pelo seu talento demonstrado, ela é uma mulher forte, bela, guerreira, persuasiva, líder, e obstinada por liberdade. Dandara contribuiu com toda a construção da sociedade de Palmares, e para sua organização socioeconômica, política, familiar.” (Maria de Lourdes Siqueira, professora aposentada da Universidade Federal da Bahia)
“Para os brancos fiquei sendo Luísa, Luísa Gama, mas sempre me considerei Kehinde. O nome que a minha mãe e a minha avó me deram e que era reconhecido pelos voduns, por Nana, por Xangô, por Oxum, pelos Ibêjis e principalmente pela Taiwo. Mesmo quando adotei o nome de Luísa por ser conveniente, era como Kehinde que eu me apresentava ao sagrado e ao secreto.” (Ana Maria Gonçalves, Um defeito de cor)
A diferença entre um mito e uma lenda é não só de natureza, mas de função. De acordo com Mircea Eliade, em Mito e Realidade, “o mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do ʻprincípioʼ”. Já a lenda, segundo Luís da Câmara Cascudo, em seu Dicionário do Folclore Brasileiro, é um “episódio heroico ou sentimental com o elemento maravilhoso ou sobre-humano, transmitido e conservado na tradição oral popular, localizável no espaço e no tempo. [...] possui características de fixação geográfica e pequena deformação. Liga-se a um local, como processo etiológico de informação, ou à vida de um herói, sendo parte e não todo biográfico ou temático”.
Ou seja, enquanto o mito trata das “diversas, e algumas vezes dramáticas, irrupções do sagrado (ou do ʻsobrenaturalʼ) no mundo”, in illo tempore (em tempos remotos, míticos), tendo como personagens deuses ou heróis míticos, a lenda trata de acontecimentos ou personagens reais, com tempo e local determinados, mas que são cercados de fantasia. Por exemplo: Prometeu é um personagem mítico, mas Zumbi dos Palmares é um personagem lendário. O ato de Prometeu, de roubar o fogo (conhecimento, técnica) dos deuses e oferecer aos homens, ocorreu num tempo primordial, mas, segundo Eliade, é “uma ʻhistória verdadeiraʼ e, ademais, extremamente preciosa por seu caráter sagrado, exemplar e significativo”. Já a lenda incrementa fantasia (tais como heroísmo e divinização) a personagens históricos.
Luísa Mahin pode habitar o imaginário popular como uma mulher de importância. Mas falsear sua história por motivos ideológicos é um erro
Apesar de ele ser cercado de lendas, a historicidade de Zumbi é incontestável. Muitos documentos o atestam, dentre eles o célebre História da América Portuguesa, de Sebastião da Rocha Pita, publicado em 1730, e que fala, dentre outras coisas interessantíssimas sobre Palmares, que “elegiam por seu príncipe, com o nome de Zombi (que no seu idioma vale o mesmo que diabo), um dos seus varões mais justos e alentados”.
A propósito, a acusação sobre a escravidão em Palmares ou mesmo se Zumbi tinha escravos é absurda. Primeiro porque, ainda que houvesse escravidão em Palmares, esta, evidentemente, não seria uma cópia do modelo colonial, com tráfico, comércio em larga escala e crueldades, como “senhores mandando queimar vivas, em fornalhas de engenho, escravas prenhes, as crianças estourando ao calor das chamas”, tal qual nos conta Gilberto Freyre em Casa-grande & Senzala. Rocha Pita diz que “aos escravos que por vontade se lhes iam juntar, concediam viverem em liberdade; os que tomavam por força, ficavam cativos e podiam ser vendidos”; mas não sabemos se esses “cativos” realizavam trabalho escravo ou ficavam presos. Outro detalhe é que Palmares existiu por praticamente um século, e não é possível afirmar se, nos tempos de Zumbi – ou seja, o final –, ainda havia cativos desse tipo nos quilombos.
Leandro Narloch, ao afirmar, em seu Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil, que “Zumbi tinha escravos”, e, para provar, diz que “é certo que viveu no século 17. E quem viveu próximo do poder no século 17 tinha escravos, sobretudo quem liderava algum povo de influência africana”, não prova nada, apenas faz uma inferência a fim de recusar a tese de que Zumbi tenha “se adiantado ao espírito humanista europeu ou previsto os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade da Revolução Francesa”, no que concordo; Palmares não era um quilombo abolicionista – como o do Leblon ou o do Jabaquara, que surgiriam séculos depois. Mas não é necessário macular a lenda de Zumbi para atacar o Dia da Consciência Negra – sobre o qual já falei aqui, nesta Gazeta do Povo – ou mesmo os movimentos negros. Zumbi foi um dos heróis da paradoxal história brasileira, como, em sentido análogo, foram Toussaint Louverture na França e Sojourner Truth nos Estados Unidos. Zumbi pode não ter sido abolicionista, mas foi alguém que lutou contra o sistema vigente, contra o Estado.
Voltando ao tema principal: em 27 de março de 2019, o Senado Federal aprovou o projeto de lei que inscreveu os nomes de Dandara dos Palmares e Luísa Mahin no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria. O projeto, da deputada Tia Heron (Republicanos), gerou certa controvérsia à época, uma vez que personagens considerados lendários nunca haviam sido inscritos no chamado Livro de Aço. Mas, recentemente, uma pesquisa inédita sobre Luísa Mahin, mãe do extraordinário Luiz Gama (aqui, aqui e aqui), trouxe de volta o debate sobre sua história, e aproveito esse artigo para falar também de Dandara.
As únicas informações que tínhamos a respeito de Luísa Mahin haviam sido fornecidas por Luiz Gama em seu relato autobiográfico escrito a pedido de seu amigo, o jornalista Lúcio de Mendonça. Nele, o abolicionista afirma, dentre outras coisas:
“Sou filho natural de uma negra, africana livre, da Costa-da-Mina (Nagô de Nação), de nome Luiza Mahin, pagã, que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã. Minha mãe era baixa de estatura, magra, bonita, a cor era de um preto retinto e sem lustro, tinha os dentes alvíssimos como a neve, era muito altiva, geniosa, insofrida e vingativa. Dava-se ao comércio – era quitandeira –, muito laboriosa; e mais de uma vez, na Bahia, foi presa, como suspeita de envolver-se em planos de insurreições de escravos, que não tiveram efeito.”
Isso foi o suficiente para que os movimentos negros – ou melhor, as feministas negras –, levados por sua contemporânea orientação marxista, tratassem logo de construir (ou completar) a lenda, afirmando que Mahin havia participado da Revolta dos Malês. E foram além. Em seu verbete na Wikipedia, encontramos algo surpreendente:
“Luiza Mahin [...] foi uma revolucionária do período colonial do Brasil, símbolo de resistência negra no país [...]. Luiza esteve envolvida na articulação de todas as revoltas e levantes de escravosque sacudiram a então Província da Bahia nas primeiras décadas do século XIX. De seu tabuleiro, eram distribuídas as mensagens em árabe, por isso, espalhava a mensagem da revolta por onde passava, tendo um papel importante na circulação de informações confidenciais durante esse processo, através dos meninos que pretensamente com ela adquiriam quitutes. Desse modo, esteve envolvida na Revolta dos Malês (1835) e na Sabinada (1837-1838). Sua casa foi transformada no quartel-general destas revoltas.”
Dandara nem sequer existiu. Tudo que sabemos a respeito dela foi inventado por um romancista
O problema é que tal fantasia acaba de ser desmontada pela historiadora Wlamyra Albuquerque, professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA), e pela pesquisadora Lisa Earl Castillo, que publicaram o estudo “Família, insurgências e contravenções – Memória e história de Luiz Gama na Bahia”, na revista Afro-Ásia, do Centro de Estudos Afro-Orientais (Ceao) da UFBA, provando que Mahin era, na verdade, uma escrava – provavelmente, do pai de Luiz Gama – e que não constam registros de participação sua em qualquer movimentos de insurgência na Bahia. Diz Lisa Earl Castillo, em entrevista para o Jornal da Unesp:
“É importante fazer uma distinção entre o que Luiz Gama coloca em sua famosa carta autobiográfica e as narrativas que surgiram depois. Sobre a participação dela na Revolta dos Malês, Luiz Gama disse que a mãe dele fora presa sob suspeita de participação em levantes de escravos que não tiveram efeito [...]. Nos autos do levante, não há registros da prisão de uma mulher chamada Luiza e nos anos 1830 aconteceram várias outras insurreições na Bahia. O primeiro texto que a vincula à Revolta dos Malês foi um romance publicado um século depois, portanto uma construção posterior.”
E complementa:
“O discurso feminista negro, sobretudo após a ditadura militar, já apropriava a imagem de Luiza e a reinventava como heroína revolucionária. Posteriormente, veio o romance de Ana Maria Gonçalves [Um Defeito de Cor, publicado pela Record em 2006], as escolas de samba [a Mangueira homenageou-a em 2019 e a Portela, em 2024]; tudo isso ajudou a solidificar sua presença como símbolo. Essa transformação é parte da história de como o passado é reapropriado conforme a necessidade política e cultural.”
Entretanto, conforma a pesquisa nos mostra, nada disso parece ser verdade. Vale citar um pequeno trecho do artigo em que as pesquisadoras atestam sua descoberta:
No acervo do Arquivo Público da Bahia encontramos escrituras de vários imóveis na Rua do Bangla, de propriedade de Antônio Agostinho Carlos Pinto da Gama, todos herdados de uma tia, Maria Rosa de Jesus, e vendidos entre 1837 e 1840. Além de o vendedor ter o sobrenome idêntico àquele usado por Luiz Gama e de as propriedades estarem na rua onde este disse que nasceu, outro detalhe fundamental é a referência à tia do vendedor. Pois na carta autobiográfica, Gama afirmou que o patrimônio do progenitor viera de uma tia. Em seguida, localizamos o testamento de Maria Rosa de Jesus, redigido em 1837. Solteira e sem filhos, a testadora instituiu como herdeiro universal o sobrinho, Antonio Agostinho Carlos Pinto da Gama. Além de seus imóveis na Rua do Bangla, Maria Rosa tinha duas cativas nagôs e fez menção especial a uma, chamada Luiza, cujo filho, ʻde nome Luiz Gonzaga Pinto da Gama [...] é livre de toda a escravidão como se assim nascesseʼ. Não cabe a menor dúvida. O menino era o próprio Luiz Gama e a mãe mencionada pela testadora era Luiza Mahin.”
Ou seja, o heroísmo de Luísa Mahin foi “somente” o de ter sobrevivido à escravidão e ter dado à luz ao – este, sim, herói – advogado, poeta, jornalista, político e abolicionista, o genial Luiz Gama. Não que, com isso, sua história deva ser diminuída ou mesmo a lenda criada por seu filho, recusada. As lendas têm sua função e Mahin pode habitar o imaginário popular como uma mulher de importância. Mas falsear sua história por motivos ideológicos é um erro. Uma curiosidade mórbida é o fato de Antonio Agostinho ter vendido o próprio filho e, provável e anteriormente, a mulher com quem o gerara, e que a história narrada por Gama na carta, de que a mãe teria fugido, ser uma mentira contada pelo pai para não admiti-lo.
O caso de Dandara é ainda mais bizarro, pois esta nem sequer existiu, por isso não pode nem sequer ser considerada uma figura lendária, como Mahin. Tudo que sabemos a respeito dela foi inventado por um romancista, João Felício dos Santos, em seu romance Ganga Zumba, publicado em 1962. Nele, há coisas como: “Dandara, mulata, por isso cantava: – O vento que vem do mar... Dandara bambula, do corpo limpinho, a filha de branco, a moça que tinha o cheiro do mar, a moça que dava no beijo dos olhos os olhos no olhar”. O cantor, compositor e pesquisador Nei Lopes, chama o texto de “delirantemente fantástico”. Ele ainda denuncia:
Os textos que fundamentam a história dos quilombos de Palmares baseiam-se em relatórios militares encomendados pelas autoridades coloniais. Foram escritos sob a ótica dos dominadores, repressores daquela subversão, e serviam principalmente para exaltar não as façanhas dos aquilombados, mas a atuação dos integrantes das expedições de captura ou extermínio. Esses, sim, são citados nominalmente; enquanto que os quilombolas nominados são, salvo engano, apenas aqueles que deram nomes a suas comunidades, como era comum na Angola colonial: Dambrabanga, Andalaquituxe, Ganga Zumba, Zumbi etc. Falamos em Angola; porque o ʻquilomboʼ é uma instituição social congo-angolana. E aí apontamos a primeira armadilha da ficção de João Felício: ele associa o nome ʻDandaraʼ ao de um orixá, quando sabemos que o termo ʻorixáʼ, bem como sua conceituação, não pertence ao universo banto, angolo-conguês, e sim ao iorubano, da atual República da Nigéria, no Golfo da Guiné [...]. Sobre esse nome, para nós, o que ecoa próximo é apenas o de Elesbão Dandará, um dos líderes da Revolta dos Malês, em 1835. Mas ʻDandaraʼ é um nome hauçá, língua em que o elemento ʻdanʼ corresponde ao árabe ʻibnʼ e ao hebraico ʻbenʼ, com o significado de ʻfilho deʼ. Acreditamos, então, salvo prova em contrário, que a ʻDandaraʼ de Zumbi é um personagem fictício.”
Não só incluíram no panteão dos heróis da pátria uma personagem lendária, mas uma personagem ficcional, inexistente na realidade
Ou seja, não só incluíram no panteão dos heróis da pátria uma personagem lendária, mas uma personagem ficcional, inexistente na realidade. O imaginativo verbete na Wikipedia, esse o leitor pode conferir por si próprio. Basta sabermos que quase tudo no feminismo negro é ficcional, orientado ideologicamente, sem lastro na realidade. São reivindicações anticapitalistas e sexistas, que tendem a relegar o homem – sobretudo o homem negro – a uma condição de coadjuvante, quando não de opressor e violento.
A professora aposentada da UFBA Maria de Lourdes Siqueira (citada em epígrafe) é uma das figuras que disseminaram (e, ao que tudo indica, não voltou atrás) a ficção de Dandara como realidade. Numa entrevista ao jornal O Globo, ela afirma: “Dandara é a mais representativa liderança feminina na República de Palmares. Participou de todas as batalhas, de todas as lutas, de tudo que lá foi criado, organizado, vivido e sofrido. Sabe-se pouco sobre as suas origens: onde nasceu, de onde veio. Alguma literatura diz que ela tinha ascendência na nação africana de Jeje Mahin”. Um delírio completo. Dandara, repito, não é personagem lendária, é uma invenção literária, assumida pelo feminismo negro em sua busca por protagonismo feminino – não qualquer protagonismo, mas aquele que elas possam livremente manipular.
Sim, temos escassez de representação feminina na história brasileira, sobretudo de mulheres negras no período escravista. Salvo algumas exceções, como a compositora Chiquinha Gonzaga, a escritora Maria Firmina dos Reis e as lendárias Zacimba e Tereza de Benguela – enquanto, nos Estados Unidos, temos, por exemplo, as verdadeiras heroínas, saídas da escravidão, Harriet Tubman e a já citada Sojourner Truth –, não temos dados concretos da participação de outras mulheres negras no movimento abolicionista. Mas isso não nos deve empurrar para a invencionice pura e simples. Cumpre buscarmos as referências que nos são próximas e que nos podem orgulhar de fato, como Antonieta de Barros, a primeira deputada negra eleita no Brasil, em 1934; Tia Ciata, em cuja casa nasceu o samba; e a miraculosa Carolina Maria de Jesus.
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Foto de negra usando turbante, feita em 1870, já foi associada tanto a Luísa Mahin quanto a Dandara. (Foto: Alberto Henschel/Wikimedia Commons/Domínio público) |
Paulo Cruz é professor e palestrante nas áreas de filosofia, educação e questões relacionadas ao racismo no Brasil. Formado em Filosofia e mestre em Ciências da Religião, é professor de Filosofia e Sociologia na rede paulista de ensino público. Em 2017 foi um dos agraciados com a Ordem do Mérito Cultural, honraria concedida pelo Ministério da Cultura, anualmente, por indicação popular, a nomes que se destacaram na produção e divulgação cultural. **Os textos do colunista não expressam, necessariamente, a opinião da Gazeta do Povo.
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