sábado, 20 de dezembro de 2025

O Norte Fluminense celebra 79 anos de história e memória

Um jornal feito de tinta, gente e memória

 Quando a notícia vira história


Naquele endereço onde hoje se vendem móveis, na Braga Móveis, antes se imprimiam destinos. A Gráfica Gutemberg, responsável pela impressão do jornal O Norte Fluminense, funcionava, na década de 1950, no espaço da frente do prédio onde aos fundos funcionava a antiga Fábrica de Balas São Jorge. Produzia um barulho que misturava máquina, gente e urgência. À esquerda, um estacionamento improvisado; ao fundo, um pé de damasco, único na região, dizem, de casca macia, próprio para carícia e furto infantil. Ali entrava-se cedo: 10, 12 anos. Menores no documento, maiores na disposição. Não se imprimia apenas jornal. Imprimia-se gente.

Em frente à gráfica ficava o horto, depois batizado de Noelândia, e um pneu pendurado, desses que convidam à desobediência. Um dia, alguém cedeu ao convite. O pneu foi solto, desceu a ladeira, raspou a parede da delegacia e estacionou, obediente, diante da gráfica. Diante da autoridade e da quase certa bronca, os jovens decidiram faltar ao trabalho até que a paz voltasse a circular. Voltaram. Como sempre. Mais tarde, um banco de carro velho foi instalado no horto. Servia para sentar, descansar e, ocasionalmente, para vendedores de salgados tirarem cochilos. Em certos casos, a fome dos jovens falava mais alto.

Almir Rodrigues de Almeida veio de Macaé para a festa, mas sua história já morava ali. Foi naquela sala de aula, hoje auditório do Espaço Cultural Luciano Bastos, que conheceu Joana, com quem se casou. Dali saíram três filhos, quatro netos e uma árvore genealógica que renderia um belo caderno especial: Cristian, Amanda, Almir Filho, Lucas, Nicolas, Ana Helena, Ricardo e Max. Nomes que não deram manchete, mas fecharam edição.

Havia muitos Almires. O Almir que assobiava imitando um trinca-ferro, até Fernando Barroso, apelidado com o nome do referido pássaro, decidir que aquilo era concorrência desleal e resolver o impasse com um cascudo. O Almir das terapias alternativas, como sugerir damasco para espinha, Rodinei seguiu a recomendação e ganhou um rosto inchado, devidamente arquivado na memória coletiva. O Almir que fazia de tudo: empurrava na brincadeira, errava o cálculo e caía no barro, para desespero da mãe, que só tinha uma roupa limpa.

Teve o Almir com a mão prensada na impressora, a mãe em pânico e uma cicatriz permanente, dessas que o tempo não apaga porque não quer. Teve o Almir carregando 25 quilos de caulim desde Campos, atravessando ponte, fazendo baldeação e achando normal. Teve o Almir enganado por Juarez, que pediu ajuda para pegar a bola no valão e soltou a mão na hora errada. Teve fuga por goiabeira, perseguição de Eli e gargalhada geral. “Eu, Índio, Edalvo e Altair éramos o Quarteto da Maldade”, resume, sem pedido de desculpas.

“Minha vida foi aqui”, diz Almir. “Formei-me aqui. Depois fui para o petróleo, já pai, já amadurecido.” Trabalhou embarcado, progrediu por mérito, chegou à área administrativa. Levou consigo lições aprendidas no jornal, sobretudo as de segurança. Nunca esqueceu as raízes. Ao contrário: sempre as carregou. “No escritório, eu era o Almir Bom Jesus.”

João Batista, o Andorinha, Diretor Comercial, começou no jornal em 1957 e nunca parou quieto. Em 1974, o jornal mudou-se para o centro, na rua Buarque de Nazareth, em imóvel alugado de José Tarouquela, pai de Helton Almeida, conhecido como seu Heltnho. Posteriormente, o jornal passou a ocupar os fundos da Gráfica Gutenberg, na mesma rua. Em 1977, chegou Edalvo Florentino Balbino. Em 1978, outros tantos. Alguns ficaram até 2003, com a morte de Ésio Bastos. Outros até 2011, quando se foi Luciano Bastos. No Natal, trabalhava-se de madrugada. Dormia-se no chão. Houve edição com 42 páginas. Ninguém reclamou: era jornal e era fim de ano.

Andorinha recordou da vizinha Dona Aldinha, esposa de Joaquim Cesário, o relojoeiro. No quintal dela, um pé de jambo. Quando o pé ficava mais leve do que devia, vinha a reclamação clássica: "Seus meninos estão roubando meu jambo!"

Lembrava também do Índio, jogador de sinuca e funcionário eventual. Índio pedia folga porque ganhava mais jogando do que trabalhando. O pedido chegava a Ésio, que autorizava. Depois de tantas ausências, Índio deu baixa por dois anos. Voltou. Tinha lábia, confiança e acabou dirigindo os Corcéis de Ésio, o 1 e o 2.

Andorinha recordou ainda o período em que Ésio Bastos acumulou a direção do jornal com o trabalho no Instituto Vital Brazil, no Rio de Janeiro, na época em que governador era o bonjesuense  Badger Silveira, irmão de Roberto Silveira. 

Certa vez, segundo Andorinha, Patané sugeriu a Ésio a implantação da linotipo, máquina que “escrevia” o jornal em metal e permitia edições maiores e mais rápidas. Ésio pensou, ponderou e manteve o sistema tradicional. Motivo oficial: preservar empregos. Motivo real: ninguém mexe no que está funcionando, sobretudo quando há história no meio.

Ésio Bastos tinha frases que dispensavam editorial. Esticava uma mão no balcão, batia com a outra e decretava:
" Toca o enterro! O que você quer?
Ou então:
"Tá pensando que sou um banco?

Nas Festas do Noé e de Agosto, a Gráfica Gutemberg costumava ser furtada. Os ladrões entravam pelo teto, talvez leitores atrasados. Nelson 78 era investigador.
Edalvo lembra de um suspeito vendendo os objetos subtraídos. Ésio registrou ocorrência. Recuperar, nunca. Ficaram o Morro da Arara, Paulão Mão de Onça e histórias que o jornal não publicou, mas que todo mundo leu na memória.

Entre uma edição e outra, a vida acontecia: piquenique na Prainha, cesta de pão, anzol, a Usina Mangaravitte ao fundo. Na Festa do Noé, imprimia-se a programação, trabalho dobrado. Às vezes o trabalho era grande e tinha que ser enviado para a Gráfica da Usina Santa Maria, que era gerenciada pelo Sr. Alfredo Pisca, mais moderna. Moderna, mas sem o damasco.

José Claudio lembrou de uma discussão entre Brotinho e Chapoca sobre o pagamento do bicho ao time do Fluminense de Bom Jesus. Brotinho dizia que a diretoria não queria pagar. Chapoca lembrava que a informação era equivocada: a notícia era que o jogo do bicho era proibido. Cada um com sua versão, ambas publicáveis, nenhuma publicada.

Num fim de ano, Luís Nogueira promoveu uma cabritada. Depois da festa, Almir foi lavar a gráfica. Edalvo resolveu jogar capoeira. Resultado: fratura no úmero de Almir e mais uma história sem data para circular.

Gérson Dias Araújo, Jorge Francisco Lima (o Tatu), Edalvo, Ésio, Índio, Altair formavam um elenco sem glamour, mas com material para edição extra. Índio cantava alto; Ésio mandava cantar baixo. Quando a energia acabava, o trabalho prosseguia à luz de vela, e a energia mecãnica entrava em ação. O cotidiano era feito de pequenas epopeias: broncas inevitáveis, mãos manchadas de tinta, risos fora de tom.

Andorinha, casado com Maria Eunice, é pai de Rossini e Rossana; avô de Brícia, Felipe e Eric. Edalvo é casado com Fátima, pai de Natália, Lara, Najara e Marcus Vinícius; avô de Heitor, Iasmin, Maitê, Pietro, Antenor, Maira e Ana Júlia. André Luiz de Oliveira, atual colaborador de O Norte Fluminense, é pai de Vitória, Eulália e Miguel. José Cláudio Gonçalves Dias é pai de João Cláudio, Paulo Roberto e Paulo Vitor.

Hoje, quando se fala daquele tempo, não se fala apenas de máquinas, datas ou cargos. Fala-se de damascos, pneus, gargalhadas e histórias que nunca viraram manchete, mas que, juntas, ensinaram um jornal a respirar.

Após cerca de duas horas de conversa, vieram os certificados de reconhecimento, o “parabéns pra você”, bolo, salgadinhos e refrigerante. Em seguida, o grupo seguiu para o Museu da Imprensa, administrado pelo Espaço Cultural Luciano Bastos, onde reencontrou a máquina tipográfica Allauzet, do século XIX, responsável por imprimir O Norte Fluminense por décadas, os tipos, os clichês, as máquinas alemãs, os equipamentos que fizeram a Gráfica Gutemberg existir.

Foi um reencontro emocionado com um passado que segue presente.

Todos saíram com a promessa de voltar, para os 80 anos do jornal.

Para reencontrar a história.

E a si mesmos.

Nota: Almir enviou um texto em homenagem ao colega de jornal, Marcos Barbosa da Silva, que publicamos a seguir.

"Marcos Barbosa da Silva, o Marquinho", por Almir Rodrigues de Almeida

Nascido e criado em Bom Jesus do Norte, Marcos Barbosa da Silva, carinhosamente conhecido como "Marquinho", sempre teve uma paixão ardente pelo futebol, especialmente pelo seu time do coração, o Vasco da Gama e pelo clube da sua cidade natal, o Ordem e Progreso, onde chegou a dar alguns chutes na pelota. Desde jovem, ele demonstrou uma dedicação incomum, não apenas como torcedor, mas também como um defensor fervoroso dos valores de justiça e correção.

Marquinho se destacou em sua carreira profissional na Gráfica Gutenberg e no Jornal “O Norte Fluminense”, onde chegou nos anos 60 e ocupou cargos de liderança. Conhecido por sua exigência de qualidade em tudo que fazia, sua abordagem direta e sem rodeios, muitas vezes vista como dureza, era na verdade um reflexo de seu compromisso com a excelência. Ele acreditava que a disciplina e o rigor eram essenciais para alcançar resultados significativos.

Apesar de sua postura firme, Marquinho tinha um lado mais suave que poucos conheciam. Seus amigos mais próximos sabiam que, por trás da fachada rígida, havia um homem leal e generoso, sempre disposto a apoiar aqueles que se esforçavam para melhorar. Sua paixão pelo Vasco e pelo Ordem e Progresso, o uniu a muitos, criando laços que transcendiam o campo de futebol.

Marquinho vive sua vida com um forte senso de propósito, sempre buscando a perfeição em seu trabalho e incentivando os outros a fazer o mesmo. Para ele, cada vitória, seja no futebol ou na vida, é conquistada com esforço e dedicacao.


José Eufrázio, Gerson, Edalvo e João Batista, o Andorinha, na antiga Gráfica Gutenberg

Edalvo e Andorinha 

João Batista Assad, o Andorinha, e três colegas, em 1957, à frente da Gráfica Gutemberg e da Fábrica de Balas São Jorge, onde hoje está a Braga Móveis. 


João Batista, o Andorinha, no primeiro plano. Atrás de Juarez (fundos),  havia o famoso pé de damasco, ao lado da Fábrica de Balas Sâo Jorge. Hoje a Braga Móveis ocupa hoje toda a  área. Onde aparece a bananeira, ao lado do valão, está hoje um posto de gasolina. 


































A Voz da Nossa História 


Um comentário:

  1. Parabéns a todos os colaboradores e ex-colaboradores do O Norte Fluminense! Vocês são e foram fundamentais pelos 79 anos de história e credibilidade do jornal!👏👏👏❤️

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