quarta-feira, 26 de novembro de 2025

"Racismo estrutural: uma teoria social falha que apostou na ignorância – e venceu", por Paulo Cruz

O ex-ministro dos Direitos Humanos Silvio Almeida é um dos principais defensores da teoria do racismo estrutural. (Foto: Antônio Cruz/Agência Brasil)


 “A perda de realidade leva a distúrbios pneumopatológicos na ordem existencial da pessoa respectiva, e se a vida na ʻsegunda realidadeʼ se torna socialmente dominante, seguem-se grandes distúrbios na ordem social com os quais estamos bem familiarizados.” (Eric Voegelin)

Quase tudo o que eu tinha para falar em relação à teoria social propagada pelo proscrito Sílvio Almeida está em outro artigo publicado nesta Gazeta do Povo, de modo que não me estenderei para além de alguns poucos comentários adicionais, mas importantes, a fim de compreendermos o quanto essa teoria – sempre é bom frisar que trata-se de uma teoria – é intelectualmente primária e sofre de problemas conceituais gravíssimos, de modo que sua aceitação é sinal de uma doença espiritual generalizada na academia, que encontra validação na ignorância de uma população de analfabetos funcionais.

O Brasil é um país mestiço – pardo, mulato, como queiram. Não há o que tergiversar em relação a isso e absolutamente ninguém deveria ter dúvida. A mestiçagem é um dos sinais mais evidentes da complexidade do problema racial brasileiro. Já cansei de dizer aqui, inclusive recentemente – apesar de alguns continuarem em negação: o racismo existe no Brasil e, é bom que se diga, não foi uma invenção dos negros. O racismo existe como uma consequência dos quase 350 anos de escravidão, das teorias racialistas (que acreditavam na existência de raças humanas) e racistas (que acreditavam na hierarquia ontológica entre as raças) e sua subsequente cultura de subalternização do negro. Isso é um fato, um dado da realidade histórica do nosso país que só os racistas e os estúpidos negam.

Por outro lado, a falta de um projeto de país que diminua a pobreza e promova a mobilidade social em larga escala faz com que a perpetuação da população negra nas camadas mais baixas da sociedade gere demandas reais que são convertidas em bandeiras políticas e ideológicas pela disputa de poder. E os dados não mentem. De acordo com a pesquisa Sínteses dos Indicadores Sociais (SIS), do IBGE, de 2020:

“A maioria dos pobres no Brasil é de mulheres, negros e pessoas com pouca instrução. A SIS mostrou que, entre os brasileiros abaixo da linha da pobreza no Brasil (considerando os critérios do Banco Mundial, de renda per capita diária inferior a US$ 5,50 para pobres e US$ 1,90 para extremamente pobres), mais de 70% eram negros ou pardos. Esse grupo representava 56,3% da população total. Isso quer dizer que a maioria dos 117,9 milhões de brasileiros que se declararam negros ou pardos em 2019 vivia na pobreza. De acordo com a SIS, 8,9% deles (ou 10,5 milhões) eram extremamente pobres e 32,3% (ou 38,1 milhões), pobres.”

O racismo existe no Brasil. Isso é um fato, um dado da realidade histórica do nosso país que só os racistas e os estúpidos negam

A pobreza tem cor no Brasil, ela é preta e parda: “em 2019, o contingente de negros ou pardos pobres (38,1 milhões) era 2,8 vezes maior que o de brancos pobres (13,2 milhões). Essa concentração era ainda maior no grupo de extremamente pobres. De acordo com a SIS, eram 10,5 milhões de negros e pardos nessa situação – quase 3,5 vezes o contingente de brancos, que somava 3 milhões”.

Dito isso, tal situação, cujas causas são multifatoriais (o racismo é um fator, mas não o único), é utilizada para sustentar todas as teorias delirantes que a militância negra identitária propaga como se fossem verdades absolutas; dentre elas, a mais fundamental, sobre a qual se assentam praticamente todas as outras, é a do chamado “racismo estrutural”. Tal teoria se assenta sobre a premissa de que o racismo no Brasil se processa para além da esfera individual ou mesmo das instituições; ele penetrou nas chamadas estruturas sociais, políticas, jurídicas e econômicas.

O fato de Sílvio Almeida nem sequer conceituar o que é uma estrutura em seu livro não causou espanto em (quase) ninguém, obviamente porque (quase) ninguém leu o livro. E os que leram já concordavam, e quem concorda não precisa compreender. A teoria foi aceita como argumento de autoridade, uma vez que Almeida se tornou, pelo menos para a mídia e os formadores de opinião (e para a internet, claro), o grande representante da população negra naquele período agudo das discussões sobre racismo no Brasil, iniciado a partir do assassinato de George Floyd, em 2020, nos EUA, e de João Alberto de Freitas, numa loja do Carrefour, em Porto Alegre, no mesmo ano. Almeida figurava em praticamente em todos os jornais e quem discordasse de sua teoria era devidamente defenestrado.

O delírio que se seguiu foi tão amplamente disseminado e irrefletidamente assimilado que tal teoria, sem qualquer comprovação científica, se tornou até base para decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) – e corremos o risco de isso ocorrer novamente, com a votação da patética ADPF 973. A inconstitucionalidade do “estado de coisas inconstitucional” é a cereja do bolo para as incessantes, e a cada vez mais absurdas, reivindicações do ativismo político negro.

A “perda da realidade” de que fala o filosofo Eric Voegelin na epígrafe deste artigo é o motor para construções ideológicas que não correspondem ao que de fato existe, mas cuja existência é fruto de abstrações teóricas assumidas como descrições da realidade. A perda da realidade, nesse sentido, “se expressa na perda de contato das palavras. As palavras adquirem sua própria existência, a linguagem torna-se uma realidade independente em si mesma”, diz Voegelin em Hitler e os alemães.

O conceito de estrutura, por exemplo, no qual Sílvio Almeida baseia toda a sua teoria, é retirado de um único sociólogo, Anthony Giddens, cuja “teoria da estruturação” está longe de ser unânime na academia, mas sofreu críticas severas de outros sociólogos. Giddens afirma, em A Constituição da Sociedade, que:

“Não pode haver dúvida sobre o modo como ʻestruturaʼ é usualmente entendida pelos funcionalistas e, de fato, pela vasta maioria dos analistas sociais – como uma espécie de ʻpadronizaçãoʼ das relações sociais ou dos fenômenos sociais. Com frequência, isso é ingenuamente concebido em termos de imagens visuais, análogas ao esqueleto ou morfologia de um organismo ou às vigas mestras de um edifício. Tais concepções estão intimamente ligadas ao dualismo de sujeito e objeto social: ʻestruturaʼ apresenta-se nesse caso como ʻexternaʼ à ação humana, como uma fonte de restrição à livre iniciativa do sujeito independentemente constituído.”

O conceito de estrutura, no qual Sílvio Almeida baseia toda a sua teoria, é retirado de um único sociólogo, Anthony Giddens, cuja “teoria da estruturação” sofreu críticas severas de outros sociólogos

Entretanto, entre estruturalistas e pós-estruturalistas, “a noção de estrutura é mais interessante. Ela é caracteristicamente concebida, aí, não como uma padronização de presenças, mas como uma interseção de presença e ausência; os códigos subjacentes têm de ser inferidos de manifestações superficiais”. Mas, para ele:

“A estrutura refere-se, em análise social, às propriedades de estruturação que permitem a ʻdelimitaçãoʼ de tempo-espaço em sociais, às propriedades que possibilitam a existência de práticas sociais discernivelmente semelhantes por dimensões variáveis de tempo e de espaço, e lhes emprestam uma forma ʻsistêmicaʼ. Dizer que estrutura é uma ʻordem virtualʼ de relações transformadoras significa que os sistemas sociais, como práticas sociais reproduzidas, não têm ʻestruturasʼ, mas antes exibem ʻpropriedades estruturaisʼ, e que a estrutura só existe, como presença espaço-temporal, em suas exemplificações em tais práticas e como traços mnêmicos orientando a conduta de agentes humanos dotados de capacidade cognoscitiva.”

Traduzindo: para Giddens, uma estrutura social existe apenas na medida em que é instanciada nas práticas sociais, e é ao mesmo tempo o meio e o resultado dessas práticas. A estrutura não é algo externo aos indivíduos, mas produzida e reproduzida continuamente pelas ações humanas; é composta por regras (normas, significados) e recursos (materiais e autoritativos) que orientam e organizam as interações sociais. Ou seja, a relação entre indivíduo e estrutura é dialética, e não de simples determinação – as pessoas são agentes capazes de modificar as estruturas que, ao mesmo tempo, as condicionam.

Por isso Sílvio Almeida afirma, de modo tímido em seu livro, que “ações e políticas institucionais antirracistas” podem ajudar a modificar as estruturas, ao mesmo tempo em que afirma ser “imperativo refletir sobre mudanças profundas nas relações sociais, políticas e econômicas”; ele mesmo não define quais seriam essas mudanças profundas, mas, em se tratando de um marxista, já imaginamos quais seriam.

Voltando a Giddens, ele afirma, mediante o desejo de superar os conceitos clássicos de “estrutura”, baseados no império do sujeito ou do objeto social, que uma de suas “principais ambições na formulação da teoria da estruturação é pôr um fim a cada um desses esforços de estabelecimento de impérios”, afirmando que “as atividades sociais humanas, à semelhança de alguns itens autorreprodutores na natureza, são recursivas. Quer dizer, elas não são criadas por atores sociais, mas continuamente recriadas por eles através dos próprios meios pelos quais eles se expressam como atores”.

Mas sua teoria da estruturação não passou incólume pelos olhos argutos de Margaret Archer (1943-2023), socióloga britânica católica nomeada, em 2014, pelo papa Francisco como presidente da Pontifícia Academia de Ciências Sociais do Vaticano (cargo que ocupou até 2019). Archer, assim como Giddens, reagiu a um mesmo impasse clássico na sociologia: como conciliar o peso das estruturas sociais (instituições, papéis, normas, desigualdades) com a capacidade dos indivíduos de agir e transformar essas estruturas. Mas Archer acusou Giddens de “sincretismo ontológico”, pois ele confunde estrutura e agência, impedindo-nos de distinguir causalmente entre o que é estrutura e o que é ação.

A questão, para Archer é que, se estrutura e ação são sempre simultâneas, como entender que as estruturas preexistem a certas ações e condicionam o que os agentes podem fazer? E em sua obra Realist Social Theory: The Morphogenetic Approach, Archer acusa Giddens de cometer o que ela chama de “erro conflacionista” – isto é, confundir níveis analíticos distintos (estrutura e agência) ao tratá-los como mutuamente constitutivos no mesmo momento. Ou seja, a terceira via proposta por Giddens parece elegante, mas é ontologicamente incoerente: se estrutura e agência são sempre copresentes, não podemos explicar como a ação transforma a estrutura, pois não há distância temporal entre as duas. Em suas palavras:

“O que contesto é a representação de sua ligação como adesão por contato, de modo que estrutura e agência sejam efetivamente definidas em termos uma da outra. Pois o resultado final disso é que a constituição mútua implica, em última análise, conjunção temporal entre os dois elementos. Assim, as propriedades estruturais (definidas redutivamente como regras e recursos) são consideradas fora do tempo, tendo uma ʻexistência virtualʼ apenas quando instanciadas pelos atores. Em exato paralelo, quando os atores produzem práticas sociais, eles necessariamente recorrem a regras e recursos e, portanto, inevitavelmente invocam toda a matriz de propriedades estruturais naquele instante. Tudo isso se condensa na breve afirmação de que ʻa estrutura é tanto meio quanto resultado da reprodução de práticasʼ [Giddens]. Isso representa a noção-chave da ʻdualidade da estruturaʼ, que é apresentada em oposição direta ao dualismo analítico aqui defendido.”

Já passou da hora de tratarmos da teoria de “racismo estrutural” como ela de fato é: uma falácia grosseira e mal fundamentada

Complexo? Para o leitor comum pode ser um pouco, mas o fato é que a teoria de Giddens é contestada de modo profundo e intelectualmente bem fundamentado por Archer, que propõe, em seu lugar, o conceito de morfogênese, ou análise morfogenética, a saber:

“A análise morfogenética […] confere ao tempo um lugar central na teoria social. Ao trabalhar em termos de seus ciclos tripartidos compostos por (a) condicionamento estrutural, (b) interação social e (c) elaboração estrutural, o tempo é incorporado como sequências e fases, e não simplesmente como um meio pelo qual os eventos ocorrem. Pois a própria ocorrência de eventos, como a estruturação progressiva de um sistema educacional, exige que teorizemos sobre a interação temporal entre estrutura e ação. O que é crucial, então, é que a perspectiva morfogenética sustenta que estrutura e ação operam em diferentes períodos de tempo – uma afirmação que se baseia em duas proposições simples: que a estrutura necessariamente precede as ações que a transformam; e que a elaboração estrutural necessariamente sucede essas ações.”

Ou seja, Archer sustenta que para explicar uma mudança social é preciso reconhecer que as estruturas existem antes das ações que as transformam. Sem recair no determinismo, pois a ação humana pode modificar as estruturas, afirma que essa modificação só faz sentido se houver uma estrutura realmente existente a ser transformada. Nesse sentido, “estrutura social” é mais do que um conceito heurístico ou virtual: é um nível ontológico real, com propriedades emergentes e efeitos causais.

Portanto, pode não causar espanto que Sílvio Almeida tenha ousado fundamentar a sua teoria num conceito de estrutura deficiente e amplamente criticado (o filósofo Roy Bhaskar também contesta Giddens), pois pode se tratar não só de um problema de formação (desconhecimento da crítica de Archer, por exemplo), mas de rejeição ideológica consciente a qualquer contestação, uma vez que sua teoria foi formulada na segunda realidade. Mas já passou da hora de tratarmos da teoria de “racismo estrutural” como ela de fato é: uma falácia grosseira e mal fundamentada.


Paulo Cruz é professor e palestrante, formado em Filosofia e mestre em Ciências da Religião. Em 2017, foi um dos agraciados com a Ordem do Mérito Cultural, honraria concedida pelo Ministério da Cultura a nomes que se destacaram na produção/divulgação cultural, e em 2022, com o podcast Noir, foi vencedor do Prêmio Governo do Estado de São Paulo para as Artes, na categoria Cultura Urbana. **Os textos do colunista não expressam, necessariamente, a opinião da Gazeta do Povo.

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