segunda-feira, 30 de março de 2020

ANIVERSÁRIO



 No TEMPO em que festejavam o dia dos meus anos,
 Eu era feliz e ninguém estava morto.
 Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
 E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

 No TEMPO em que festejavam o dia dos meus anos,
 Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
 De ser inteligente para entre a família,
 E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
 Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
 Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

 Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
 O que fui de coração e parentesco.
 O que fui de serões de meia-província,
 O que fui de amarem-me e eu ser menino,
 O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
 A que distância!...
 (Nem o acho...)
 O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

 O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
 Pondo grelado nas paredes...
 O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas
 lágrimas),
 O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
 É terem morrido todos,
 É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

 No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
 Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
 Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
 Por uma viagem metafísica e carnal,
 Com uma dualidade de eu para mim...
 Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

 Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
 A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais       copos,
 O aparador com muitas coisas — doces, frutas o resto na sombra debaixo do alçado —,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
 No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

 Pára, meu coração!
 Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
 Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
 Hoje já não faço anos.
 Duro.
 Somam-se-me dias.
 Serei velho quando o for.
 Mais nada.
 Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

 O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

Fernando Pessoa
(Álvaro de Campos)

15/10/1929

Enviado por Antônio Soares Borges

Um comentário:

  1. Belíssimo!!👏👏👏

    Às vezes ouço passar o vento; e só de ouvir o vento passar, vale a pena ter nascido.

    Fernando Pessoa

    ResponderExcluir