Elcio Xavier |
Ouviu-se pela segunda vez a mesma voz:
— Lurdinha! Lurdinha!
E, como sempre, um terceiro chamado teria vindo ferir a calma da manhã se a cabecinha loura não surgisse de dentro do caramanchão. Quis voltar, mas em seguida sorriu de leve e agitando a mãozinha rosada, saiu correndo:
— Estou aqui! Estou aqui!
E interpelou à irmã que a chamava:
— Oh, Lena! Por que tanta pressa? .... Ainda é tão cedo para a aula. E depois o meu amiguinho Anjo disse que eu ainda não preciso ir à escola.
— Ora querida, não fique assim tão aborrecida, com esse rostinho choroso. – respondeu sua irmã enxugando com beijos aquelas lágrimas que começavam a cair como gotinhas brilhantes. O anjo não sabe bem o que diz, é tão pequeno ainda. Mas você está quase uma mocinha. Já se esqueceu que setembro não tarda, e, portanto, terá dentro em breve oito anos?
— Sim, eu sei Lena, mas é.... Bem, não adianta, você não acredita mesmo. E ficou com as mãozinhas aparando as faces, os olhos perdidos em um mundo diferente, enquanto a irmã mais velha ajeitava-lhe os cachinhos cor de ouro. E como brilhavam naquele instante...
— Diga-me queridinha, o que a faz pensar assim? Você já não confia em mim, na sua irmã do coração?
— Oh, Lena!
E Lena, num ímpeto, abraçou a não menos bela cabeça da irmã, beijando repetidas vezes aquela bonita face que mal despontava para a vida.
— Lena! Você será capaz de guardar um segredo? Olha: é uma coisa que só poderei dizer a quem me queira muito bem. Não diga que não, sim?
A irmã ficou pensativa. Desejaria ceder? Depois encarando aquele rosto de olhinhos suplicantes, resolveu acompanha-la até o pequeno banco do caramanchão.
— Venha, Lena! Venha depressa! Vou lhe contar um segredo. Mas olha! Você promete não dizer nada a mãezinha, sim? Coitada, está sempre tão doente... e depois não quero aborrecê-la com minha história. Promete, Lena? Promete?
— Ora, querida, quantas vezes quer que a sua maninha diga sim?
— Lena, como você é boa! Foi o Anjo que me falou hoje quando brincávamos com as florinhas de neve, no canteiro de estrelas.
— Mas afinal, quem é o anjo e que coisa é essa que você faz tantos rodeios para contar?
— Ah, se o ouvisse falar!... É tão belo e diz tantas palavras bonitas! Ainda hoje, aqui mesmo neste lugar, falou sobre minha roseirinha tão feia e maltratada pelo sol. Olha, Lena, ela é como se fosse eu! Todos sabem que foi plantada por papai no dia em que cheguei a esta casa, naquele barquinho coberto de melindrosas. Não foi assim mesmo?
— Sim, querida, sim!
— Pois olha, a minha roseirinha vai abrir uma belíssima flor cor de neve azulada.
— E que tem isto, meu amor?
— Ah, se você soubesse... Lena, você já esteve tão alegre e tão triste, que ficou sem poder rir ou chorar?
— Ora, Lurdinha, que tolice!
— Não, não é uma tolice! Foi o que senti.
E, com os olhinhos brilhando como duas chamas ardentes, onde a pureza se associava, foi narrando minuciosamente as imagens retidas em sua cabecinha, feitas de sonhos.
— Pois é assim mesmo. Você promete não ficar triste, não é? Estou tão contente. E depois, gosto tanto do Anjo...
— Mas Santo Deus, que vem a ser tanta coisa?
— Ainda não sabe, Lena? Oh, como você custa a compreender a sua Lurdinha! É tão simples... Na manhã em que a rosa neve-azulada abrir todas as suas pétalas e receber o primeiro beijo de luz, eu seguirei com o anjo para um país desconhecido que ele me descreve sempre e onde serei uma princesinha com asas mais azuis que os seus olhos.
A irmã suspirou profundamente: “quanta tolice reunida!”
— Parece incrível que você, pequena como é, possa ter tantos pensamentos e imagens tão estranhos à sua idade! Não diga mais nada! Esqueça estas fantasias e vamos para a escola, mas antes prometa-me esquecer o tal Anjo e estas coisas tolas que me disse.
Lurdinha ficou pensativa por alguns minutos, vacilou e por fim prometeu esquecer tudo aquilo imprimindo um beijinho quente na face de Lena.
. . .
Dois meses se passaram. Estamos em setembro. No canteirinho de estrelas há uma belíssima rosa neve-azulada. Sobre uma caixinha de flores muito leve e macia estão os cachinhos louros e os olhinhos azuis...
Lurdinha fora levada naquela manhã muito clara para o Paraíso por seu amiguinho Anjo.
Do livro Lembranças - Contos
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