A CUTIA E O PARADOXO
Norberto Seródio Boechat
Norberto Seródio Boechat
Um declive surgiu de repente. A estrada mostrou-se tal qual um boqueirão, estendendo-se para a planície, abaixo. Ao iniciar a descida, no meio da pista, a imgaem marrom clara, lembrando um tijolo. Parei. Atropelada, talvez à noite. Focinho virado para a pista, e a pequena cauda para a floresta de onde saiu. Rígida, olhos arregalados, fixos na última visão. Encerrou sua vida sobre a nov via que atravessa, semelhante a uma faix ameaçadora, a floresta. Não se deu conta e, também, ninguém a avisou. Esqueceram-se de colocar uma placa no meio da mata:" Atenção! estrada a cem metros! Homens e suas máquinas em disparada!" Distraída, em busca do riacho para mitigar a sede, seguiu. Notou, com estranheza, que seu caminho se tornou, de súbito, liso, sem obstáculos. Isso, num primeiro momento, não a fez atinar para o perigo desse desconhecido. Num átimo, o ronco ensurdecedor e dois clarões invadiram a noite. Não teve tempo. Sensação de impacto, de coice, jamais imaginada. Desligou-se da vida. Confusa, sem movimentos, viu-se afastando da floresta em direção ao alto, rápida, até que toda a mata transformou-se num pontinho verde. Suas árvores. Seus pais e irmãos. A caça para sobrevivência. As sementes enterradas. O ambiente em que ela e ancestrais viveram por milhares de anos, muito antes de caravelas aportarem. Agora, tudo tão longe... Por que seus pais não lhe passaram a noção do bicho homem ou o cuidado que deveria ter com superfícies planas nas noites?
O progresso a matou. Igual a um tiro que rompe o silêncio no deserto e explode um crânio. E o progresso tem uma relação estreita com o paradoxal. Extremo do caminho humano e impregnado de paradoxos. Pirâmiedes foram erguidas e ao redor, nas areias, sangue misturado às lágrimas das mulheres que perderam seus maridos e filhos sob a geometria perfeita. Megalópoles, expressões maiores do projeto humano, varadas por rios de águas cinzas, asfixiados. Estradas, iguais à da Cutia, penetram o Pantanal e são os leitos de carcaças estendidas. Mas, numa outra visão, permitem o transporte de soja, vacinas, livros e bandeirantes modernos. Não seria possível cercar as rodovias para impedir a travessia dos donos das florestas e do serrado? Seria este um raciocínio paradoxal?
Mas, voltemos à cutia. Poderíamos homenageá-la e, ao mesmo tempo, desculpar-nos pelo asfalto em seu horizonte noturno? De que maneira afirmar em dignidade seu último momento na ingênua escuridão? Que fazer para sublimar sua grandeza? Por que não uma orquestra sinfônica? Quem sabe? Distribuiríamos os músicos entre os troncos, sob a copa protetora. Seria brindada com as primeiras notas da Quinta Sinfonia de Beethoven ou os acordes iniciais da Abertura da Força do Destino, de Verdi. Imaginemos que os sons se fizessem ouvir através dos ecos e tocassem o home em seu olhar apressado. Aproveitaríamos para dizer o quanto sentimos pelo trágico destino, pelo fim que lhe impusemos sem considerar a amplidão de suas milenares fronteiras.
Norberto Seródio Boechat é pirapetinguense
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