João de Azevedo Mattos |
Conheci João de Azevedo Mattos na minha meninice - ele já homem feito -, quando, ainda verde de mais para os mistérios das letras, me contentava apenas com os bonecos do “Tico-Tico”, seguindo-lhes as diabruras semana após semana. Nesse tempo, se bem me lembro, ele era agente de revistas, e aparentava ser muito mais jovem do que realmente era.
Até bem pouco, por
sinal, conservava magnífico aspecto, o que lhe dava uns ares de eterna
contemporaneidade. Continuava frequentando, com notável desenvoltura, os mesmos
salões por onde vira passar gerações e gerações de moços. Segredo muito seu
esse de manter aquela admirável performance que punha inveja nos olhos cansados
de tanta gente. João de Azevedo era um exemplo, era o exemplo.
Ora, um dia, Janjão (como lhe chamávamos os íntimos) começou
a envelhecer. Envelhecia a olhos vistos, ex abrupto, diferentemente de nós
outros, que não nos apercebemos muito desse fato. Isso, possivelmente, fazia-o
triste. Cada vez que eu ia a Bom Jesus, achava-o mais acabado, pobre de saúde,
encolhido, desesperançado. Animava-o, queria-o de pé. Mas, tudo inútil. Até que agora chega a noticia do seu
falecimento, ocorrido no dia 12 de agosto, justamente nas vésperas da festa que
ele tanto amava.
João de Azevedo Mattos, cujo desaparecimento os seus amigos
sentimos deveras, era criatura excelente. Pode-se dizer, dele, que possuía
nobres qualidades de caráter e coração. Convenho em que tenha sido tanto
sistemático no fim da vida. Sei até que não faltava quem o comparasse a certos
personagens de Dickens, por sinal aqueles mais ciosos de seus haveres.
É que
ele, coincidentemente ocupando um lugar de relevo na tesouraria das inúmeras
sociedades beneficentes e recreativas por que passou – o que consagra, afinal,
a sua indiscutível retidão quanto a assuntos financeiros também -, é que o
Janjão, muito dedicado às suas árvores, à sua casa, aos seus móveis, aos seus
livros, a todos os seus objetos, enfim dava mesmo a falsa impressão de
apegar-se de mais a esses bens terrenos.
Nenhum juízo, no entanto, mais
apressado. Certo, ele guardava tudo isso com muito zelo, mas no melhor
sentido; sem dúvida com carinho
extremo e, mesmo, indisfarçável ciúme,
com esse carinho e esse ciúme, porém, que merecem as coisas antigas, legadas
por antepassados, e às quais a nossa sensibilidade confere o prestígio de
verdadeiras relíquias. Por isso é que se dizia da sua casa, não sem uma
pontinha de maldade, que era um museu.
Realmente, por amor à tradição, ele conservava
assim mesmo, como lhe haviam deixado: a mobília antiga, cheia de nobreza e
dignidade, falando do passado; os oratórios da família religiosa, povoados de
imagens desfiguradas pelo tempo, impondo maior respeito; o velho e heróico
piano, vindo do outro século, donde tirava ele as suas valsas, valsas ternas,
saudosas, apaixonadas, assim como formando um fundo para as histórias sugeridas
por aquele ambiente de fato propício à evocação de dias idos e vindos; as
pinturas da prima Amélia, de quem sempre falava com calor, uma senhora prendada
que sabia francês, escrevia romances, fazia música e tinha muito jeito para o
desenho. E tudo, móveis e quadros, obedecendo à primitiva disposição, cada peça
no seu lugar, na mais absoluta fidelidade ao gosto dos primeiros donos. E, em
todos os quartos e todas as salas do seu casarão de celibatário impertinente
(celibatarismo ditado, talvez, por
motivo mais que respeitável).
A presença anacrônica de objetos mais que
curioso, variadíssimos, com cuja serventia quase ninguém conseguia atinar.
Colecionador incansável possuía ele todos os jornais até então editados em
nossa terra, muitos dos quais tive oportunidade de percorrer para consultas
interessantíssimas.
Aliás, ninguém melhor do que o próprio Janjão – conversador
inteligente, verdadeiro cronista vivo de boa fase da vida bonjesuense – para
completar as informações daquelas folhas bem guardadas. Quando não íamos à sua
casa para jogar a mesa nossa mão de “Poker”, ou para ouvir-lhe as músicas
prediletas, cada uma delas ligada a uma história ou a uma data, era para dele
escutar, deliciados, a narração de coisas do passado, cheias de graça e
interesse.
Recordo-o ainda agora, um dos seus momentos mais
característicos, transmitindo-nos as suas lembranças, sublinhando-as com
espírito e malícia.
Romeu Couto (texto enviado pela saudosa Ruth Fragoso de Azevedo Silveira, sobrinha de João de Azevedo Mattos)
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