Delton de Mattos
Há pouco
tempo voltei a visitar o antigo Solar dos Tardin, para reviver queridas
lembranças da juventude, ouvir novamente o eco da pedreira do outro lado do
vale, e admirar mais uma vez aquele belo e sólido casarão de fazenda, que o
rigor do tempo não consegue destruir. Fotografei com emoção todos os ângulos da
sua singela e sólida arquitetura colonial.
Mas o bom
mesmo teria sido que um pintor de gênio o retratasse, com os variados matizes
das tintas e das cores, e reproduzisse os ritmos daquelas formas penetradas de
silêncio, revolvendo o teor de velhas linguagens, adivinhando os anseios e
alegrias das gerações que ali viveram, e perscrutando a riqueza de amor e vida
que impregna as suas vetustas paredes. Pressentimos segredos e mistérios nos
seus quartos e corredores abandonados, nas suas escadas e assoalhos de rígidas
peças de madeira de lei.
Quem sabe se
nas definições de suas imagens vacilantes, e nas sombras expressionistas dessas
figuras fugidias, não seria possível vislumbrar os contornos de criaturas
apaixonadas, em colóquios sussurrantes nas velhas janelas, balbuciando
confidências para a solidão da paisagem, Ali outrora retumbaram anseios e
emoções, ecoaram cânticos de sabor antigo ao som de flautas e violas, dançaram
os pares enamorados ao compasso das sanfonas. Ali todas as pedras foram
colocadas pelos braços dos escravos. E não há formas, nem as mais simples, até
os engates dos blocos de pedra e das vigas de madeira, que não sejam o
resultado da ferrenha vontade humana de evoluir e espalhar a vida.
Estão ainda intactas as antigas estruturas de
argamassa, ligadas pelo legítimo óleo de baleia, mais forte do que o cimento, e
transportado em lombo de burro do Porto de Limeira para o alto da Serra. Por
isso, o indestrutível Solar, edificado pela experiência europeia de François
Tardin, resiste altaneiro o transcorrer dos anos, enquanto todas as construções
das cercanias, de datas mais recentes, de há muito já desapareceram. Mantém-se
firme como um palácio de sonhos, no meio da paisagem desolada e da monotonia da
pastagem.
Que fim levou
a escolinha do Chico Pereira, onde estudei as primeiras letras, a pequena venda
perto do bambuzal, em que as crianças compravam balas e pão doce feitos em
casa? Que fim levou o campo de futebol das animações de domingo, a ciranda das
meninas nas noites de São João? De tudo isto não resta hoje um sinal, sem falar
da máquina de pilar café, que acordava os moradores da região nas madrugadas,
com os seus apitos estridentes ecoando pelas encostas, e que de há muito fora
devorada por um incêndio criminoso.
No passado do Solar dos Tardin, há recordações
e lendas de fatos reais, como a de fantasmas de escravos que gemiam pelas
cumeeiras, nas noites de lua, ou a da jovem criada por Dona Jesuína,
barbaramente assassinada pelo mal encarado maquinista Antônio Maurício, ao
tentar possuí-la na beira do valão.
Até agora
ninguém pôde me informar como François Tardin chegou à Serra, que fora
inicialmente colonizada pelo meu bisavô Elias Nunes, mas que acabou mesmo
recebendo o sobrenome do famoso suíço. Mas é certo que ele conheceu a jovem
viúva Jesuína, lá pelas bandas de Carabuçú, filha do pioneiro Francisco Furtado
Costa, um daqueles onze posseiros da primitiva Bom Jesus, então chamada Monte
Alegre, que se cotizaram para legalizar as terras da Paróquia.
Segundo os
levantamentos do Padre Mello, sempre precisos e exatos, não há dúvida de que
Francisco Furtado Costa tornou-se muito cedo proprietário na Serra do Tardin, e
não o seu irmão José Rodrigues Costa, conforme reza uma equivocada tradição,
pois este de fato ficou numa gleba da Soledade.
A jovem
Jesuína casara-se em primeiras núpcias com João Pereira, com quem teve quatro
filhos: Francisco, (Chico) mestre-escola, e padrinho do meu pai Mário Nunes;
João, (Dango), que foi dono das terras hoje pertencentes aos herdeiros do
Pedrinho Teixeira; Durval, sitiante em Santo Antônio dos Milagres; e Maria, a
conhecida e respeitada "Dona Inhanhá". Jesuína era organizada,
dinâmica, corajosa, notável dona de casa, e ainda por cima bonita e bem de
vida. É fácil compreender que tenha atraído a atenção do inteligente suíço
François.
Por
coincidência, ele também era viúvo, e tinha um filho casadouro chamado João. O
resultado foi que o velho François (Francisco) veio a casar-se com a viúva
Jesuína, e após algum tempo o moço João, com a filha dela, a prendada e muito
bonita "Inhanhá". Consta que, quando os jovens ficaram noivos, os
pais mandaram João de volta a Friburgo, de onde proviera, e esperar ali, em
casa de parentes, até as vésperas do matrimônio, para que os nubentes não
coabitassem o mesmo teto enquanto solteiros.
Desse duplo
casamento, tão raro e até romanesco, iriam surgir duas proles dos Tardin. A
primeira, constituída pelos filhos de François e Jesuína, a saber: Abílio (pai
de Jesuína, filha, Muleta, Olga, Lídia, José, Mario, Zilda, Zuleica, Francisco
e Maria José); Leonides, que chegou a ser um respeitado comprador de café, e
que, quando o criminoso Antônio Mauricio pôs fogo na máquina, queimando
centenas de sacas da rubiácia, perdeu tudo o que tinha, mas depois fez questão
de honrar todos os seus compromissos de compra; Ana, a "Sinhana"; e o
caçula Alfredo, último que deixou a Serra do Tardin, mudando-se para a cidade.
Quanto à outra prole, resultante do casamento
dos jovens João e "Inhanhá", contava doze irmãos: Zoga, Zico, José,
Alcira, Eufrásia, Maria, Geraldina, Otília, Sebastião, João, Ana e Filadelfo.
Em princípio, todos "deram certo". Seria demasiado extenso discorrer
aqui sobre o destino de cada um deles.
Entretanto,
gostaria de dizer algumas palavras sobre a descendente Otília. Ela se casou na
serra do Tardin com o alemão Segismundo Fassbender, que ali chegou ainda na
juventude, depois sie muitas aventuras em diversas andanças, a apaixonou-se ao
mesmo tempo, pelas lindas montanhas e pela bela adolescente de quinze anos. Era
ele um trabalhador inteligente e pertinaz, marceneiro de primeira ordem, e
provinha das românticas margens do Reno. Nessa terceira família, reuniram-se
três vertentes psicológicas: a perspicácia mineira herdada de Dona Jesuína, a
fleugma segura dos suíços Tardin e o gênio curioso e perseverante dos alemães
Fassbender.
Segismundo e
Otília tiveram os filhos João, Astolfo, Edmundo, que viria a ser vice-prefeito
do então Distrito de Bom Jesus, Sidney, Ana, Hylda, esposa de Napoleão Teixeira
e mãe do também escritor e professor universitário João Regis, Maria
(Mariazinha), casada com o brilhante advogado e professor Deusdedit Tinoco de
Rezende, e que era muito apegada à Serra do Tardin, Nair (Nairzinha), segunda
esposa do saudoso médico e deputado César Ferolla e Otília (Otilinha), casada
com o poeta e escritor Josival Barreto.
A melhor fonte para estudar os Fassbender são
os escritos de Napoleão Teixeira, publicados na imprensa local em 1973.
Entretanto, não sabemos muito a respeito dos primeiros anos deles na Serra do
Tardin, em cuja localidade denominada "Fogão" foram nascidos e
criados os filhos mais velhos de Segismundo, que ali aprenderam a ler e
escrever, na escolinha da minha tia Carmélia (esposa de Pedro Nunes), no início
sentados sobre sacas de café, em lugar de bancos e cadeiras. Tia Carmélia foi
uma admirável mestra: de -primeiras letras. Graças à sua inata eficiência
pedagógica. Era muito respeitada desde que chegou ao "Fogão"
recém-casada, vindo de Cantagalo. Era capaz de solucionar com facilidade os
casos mais complexos da aprendizagem.
Quando Segismundo resolveu sair da roça, não
só para tomar conta de uma máquina de pilar café em Bom Jesus, mas
principalmente para dar aos filhos melhores condições de ensino, deixou Otília
e as crianças por algum tempo na fazenda do meu avô Elias Nunes. Segundo ainda
lembra com saudade o meu pai, as crianças se divertiram a valer, tomando banho
no valão, chupando laranjas e mexiricas tiradas diretamente das árvores,
brincando de esconde-esconde nos montes de palha de feijão, assando abóbora com
melado na brasa, e cantando canções de roda no terreiro.
Tinha eu dez
anos, e ia a cavalo à escolinha da Sebastiana Garcia (Ziza), que ficava na
Cachoeira, quando meu pai me mandou representá-lo num banquete na cidade em
homenagem a Edmundo Fassbender, pela sua nomeação para o cargo de
vice-prefeito. Corria o ano de 1936. Lembro-me do meu embaraço naquela
confraternização, em que passou de mão em mão uma sobremesa
"enjeitada", com uma pequena caricatura feita por Romeu Couto. Eu era
um menino magro e mal vestido da roça, a única criança solenemente sentada
entre os adultos notáveis da cidade, a ouvir longos e cansativos discursos, dos
quais mal entendia umas poucas palavras, e mesmo assim fiquei sabendo que se
tratava de um homenageado ilustre e muito querido.
Mas desde
aquela noite, em que voltei para casa debaixo de chuva, montado no lerdo burro
"Douradinho", e depois das explicações de minha mãe Pautilha a
respeito de seus amigos Fassbender e Tardin, passei a admirá-los com
entusiasmos já com uma espécie de deslumbramento intuitivo diante de tudo o que
é autêntico e de boa cepa.
NOTA - Depois
de publicado este artigo, recebi excelentes subsídios sobre as origens dos
Tardin, enviados por Heloísa Tardin, filha da saudosa Zuleica, e que é doutorada
nos Estado Unidos. Recebi também da "Otilinha" cópia dos artigos de
Napoleão Teixeira a respeito de Segismundo Fassbender. Agradeço a ambas a
gentileza.
(1991)
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